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IV REUNIÃO EQUATORIA DE ANTROPOLOGIA/XII REUNIÃO DE ANTROPÓLOGOS DO NORTE E NORDESTE 04 a 07 de agosto de 2012 Fortaleza – Ceará Grupo de Trabalho 43: Saberes locais, regionais e transnacionais na interface entre alimentação e cultura Fome, dieta e cultura: as contribuições de Audrey Richards para as relações entre antropologia e alimentação Rogéria Campos de Almeida Dutra* *Universidade Federal de Juiz de Fora. MG [email protected] 1 Apesar da intensa atividade profissional e de seu papel fundamental no processo de consolidação da antropologia britânica ao longo do século XX, Audrey Richards é lembrada principalmente por sua condição de discípula de Malinowski, cuja influência traz marcas profundas em seu pensamento desde as primeiras incursões etnográficas. Contudo, suas contribuições extrapolam a esta relação na medida em que sua longa trajetória se delineia pela inserção diversificada em cenários institucionais, seja a academia, sejam órgãos de fomento à pesquisa, ou de promoção ao desenvolvimento das colônias africanas. Como uma das primeiras mulheres a ingressarem na London School of Economics, assim como um dos primeiros antropólogos a conduzir pesquisas em solo africano, ela confirma seu pioneirismo não somente pela qualidade de seu trabalho de campo como também por inaugurar um campo de investigação antropológica, as relações entre cultura e alimentação. Audrey Isabel Richards (1899-1984) nasceu em Londres numa família tradicional de classe média alta, de burocratas de alto escalão na administração inglesa. Devido às atividades paternas, passou sua infância na Índia, retornando à terra natal quando seu pai, advogado, foi lecionar em Oxford. A década de 20 configura-se como período de experiências variadas e indefinições para a jovem Audrey, seus pais não julgavam pertinente a continuidade dos estudos, fato incomum para uma mulher naquela época. Após graduar-se em Ciências Naturais pela Universidade de Cambridge vai para Alemanha em trabalho de ajuda humanitária entre os pobres urbanos durante dois anos; no contexto de reconstrução social da sociedade alemã pós-guerra foi que Richards despertou seu interesse pela nutrição, na medida em que participava de programas que visavam o cuidado com as necessidades alimentares e padrões nutricionais dos assistidos. Ao retornar à Inglaterra trabalha durante quatro anos como secretária no Departamento do Trabalho na Liga das Nações para então decidir-se a dar continuidade a seus estudos na London School of Economics sob orientação de B. Malinowski. Com investigações focadas no território africano Richards constrói sua trajetória como pesquisadora através de diferentes incursões em campo: na Zambia (Rodésia do Norte entre os anos 1930-31. 1933-34 e 1957), na região do Transvaal entre 1939-40, em Uganda entre 1950-55. Através de um estudo cuidadoso do cotidiano dos nativos africanos, procura dar continuidade ao novo padrão de pesquisa antropológica inaugurado por seu orientador. È contemporânea de E.Evans-Pritchard, mas relacionou-se com diferentes gerações de antropólogos, como Raymond Firth, Meyer Fortes ou Adam Kuper. O reconhecimento por suas contribuições à Antropologia, contudo, não foi 2 suficiente para conferir-lhe posição de destaque na academia - como o cargo de professor titular – apesar de ter lecionado na London School of Economics, University of Witwatersrand na Africa do Sul e University of London. Além de vasta produção em periódicos, destacam-se os livros: Hunger and Work in a Savage Tribe: A Functional Study of Nutrition Among the Southern Bantu (1932), Land, Labor and Diet in Northern Rhodesia: An Economic Study of the Bemba Tribe (1939), Colonial Problems as a Challenge to the Social Sciences (1947), Economic Development and Tribal Change: A Study of Immigrant Labour in Buganda (1954), Chisungu: A Girl's Initiation Ceremony Among the Bemba of Northern Rhodesia (1956). Uma das marcas do trabalho de Richards é a combinação entre uma predisposição a se envolver com problemas práticos e a abordagem interdisciplinar; fato este que se revela pelos cargos desempenhados na administração colonial: trabalhou no Colonial Social Science Research Council, assumiu a diretoria do Instituto de Pesquisas Sociais da África Oriental, do Centro de Estudos Africanos de Cambridge, do African Sudies Association of the United Kingdom. Vale destacar que foi a primeira mulher a assumir a presidência do Royal Anthropological Institute, além de receber a Ordem do Império Britânico e tornar-se membro da Academia Britânica de Ciências em 1969. Já ao final de sua vida, na década de 70 realizou uma pesquisa numa pequena comunidade rural da Inglaterra, publicando juntamente com Marilyn Strathern, em 1981, Kinship at the Core: An Anthropology of Elmdon, a Village in North-west Essex in the Nineteen-Sixties. 1. Uma discípula de Malinowski Não há um consenso entre aqueles que se dedicaram a refletir sobre a consolidação Antropologia na primeira metade do século XX, sobre as reais marcas de Malinowski no trabalho de Richards, enquanto alguns, como Kuper (1999) a veem como uma discípula que nunca abandonou a ortodoxia das premissas funcionalistas, outros (Mintz, 2000) defendem a flexibilização desta influência entrevista não somente nos trabalhos posteriores, como também na tônica interdisciplinar de sua atuação. De qualquer forma, há um consenso em dois aspectos, o primeiro refere-se à qualidade do relacionamento entre Richards e Malinowski, se configurando este não somente como professor e mentor de sua iniciação na Antropologia como amigo íntimo, uma vez que Richards acompanhou de perto a vida familiar de seu professor e a educação de suas filhas. O segundo refere-se a nítida marca malinowskiana em seu primeiro 3 livro, Hunger and Work in a Savage Tribe , tanto em termos do tema, de sua abordagem teórica assim como metodológica. O ambiente da London School of Economics, à época em que Richards começa a assistir as aulas de Malinowski, estava associado ao clima de vanguarda, a novas ideias de desenvolvimento social através de estudos aplicados, além de representar um ambiente mais hospitaleiro para as aspirações femininas; uma instituição ainda marginal frente a outras prestigiadas, mas capaz de acolher outsiders. O perfil de Richards, advinda de uma formação em ciências naturais se adequava às aspirações de Malinowski - na verdade as credenciais de Richards coincidiram com seu interesse teórico - não somente por endossar a natureza do grupo de estudantes que se reunia sob sua influência, advindo de diferentes áreas de formação, como também por sua agenda teórica focada nas relações entre homem e cultura, mediada pelas necessidades básicas de sobrevivência. Richards trazia como proposta inicial de trabalho na London School of Economics estudar a história das ideias europeias sobre “natureza” e “liberdade” em relação à biologia humana, mas é persuadida por Malinowski a mudar seu foco para nutrição, tema à época de interesse no círculo acadêmico e governamental, o que particularmente atraiu Richards, visualizando a possibilidade de uma contribuição mais imediata e prática para as melhorias das condições sociais. Sua longa carreira acadêmica propiciou às novas gerações o testemunho da história da antropologia britânica, dos passos que se fizeram fundamentais para sua consolidação, mesmo que ao preço de julgamentos posteriores. A noção de cultura na perspectiva funcionalista é um exemplo, pois apesar de suscetível a diversas críticas, foi, a seu ver, a defesa de uma teoria da cultura que conferiu, na naquele momento o espírito científico no pensamento antropológico. “The polemic tone of some of the current writings now seen extreme, yet is doubtful whether social anthropology would soon have established itself as a separate discipline apart from archeology, technology or physical anthropology without Malinowski efforts” (Richards, 1957:20) Talvez por esta consciência, ou compreensão mais aprofundada de certas propostas teóricas que lhe conferiu segurança para lidar com a dimensão cultural mantendo ao longo de sua carreira a perspectiva de que os fatos sociais deveriam ser explicados por sua função no sistema integrado da cultura. A ideia de cultura como o arcabouço coerente de integração equilibrada entre as partes que compõem a 4 sociedade, ou seja, as instituições, cuja função seria a de assegurar a sobrevivência de seus membros vai ter peso significativo na sua análise, particularmente em relação a sua primeira pesquisa entre os Bemba como veremos adiante. Neste primeiro momento, como estudante da London School of Economics, partilhar a ideia de cultura como conjunto de crenças e costumes que visam preencher as necessidades biológicas, psicológicas e sociais humanas vai possibilitar-lhe a escolha das práticas alimentares como tema de investigação.. Como centro da análise malinowskiana, a manutenção e reprodução da sociedade, vão ser investigadas através das funções de manutenção e reprodução do próprio indivíduo, definindo-se o projeto de Richards de análise da nutrição numa sociedade tribal africana o par complementar à investigação sobre sexo entre os trobriandeses. Neste sentido, Richards já experimenta os efeitos da discriminação de gênero àquela época, dedicando-se a um tema feminino e de pouco interesse para a Antropologia Social (Mintz,2001), além de “estudar mulheres”, com trabalho de campo numa sociedade matrilinear. 2. O trabalho de campo A proposta de superação da perspectiva evolucionista elaborada por Malinowski fundamentava-se tanto por um novo viés teórico, centrado na análise das sociedades tribais em ação, como também por uma forma específica de acesso a esta realidade, a pesquisa etnográfica. O trabalho de campo, a imersão do pesquisador na sociedade estudada, o domínio da língua nativa, representavam uma ruptura ao modelo do “antropólogo erudito”, marca registrada das relações coloniais estabelecidas entre a Inglaterra e seus territórios. Contudo, certo tom de colonialismo perdura nesta nova fase da antropologia, apenas sob uma nova ordem de dominação, uma dominação esclarecida, intencionalmente orientada por formas burocráticas e administrativas de gestão da dominação, lançando-se mão, inclusive do trabalho do antropólogo para sua viabilização. É neste sentido que administradores do regime colonial inglês frequentavam as conferências de Malinowski. Do mesmo modo a inserção de Richards no campo, traz esta marca: não somente a antropóloga-pesquisadora com sua barraca, câmera fotográfica, bicicleta e um pequeno dicionário Bemba, mas uma comitiva composta por assistentes, carregadores, uma nutricionista que a auxiliaria na coleta e análise de amostras da dieta daquele povo, uma cozinheira, alguns membros da administração colonial e criados. 5 No princípio da década de 30 a sociedade Bemba estava constituída por uma população de cerca de 140000 membros, dispersos em vasta área através de uma organização social descentralizada. Já no final do século XIX, os Bemba haviam acatado a dominação colonial inglesa sem grande resistência, e viviam em pequenas vilas, através de uma organização tribal fundamentada em grupos de parentesco, de natureza matrilinear. A imposição da Indirect Rule, em 1929, a partir da qual os administradores britânicos passaram a exercer sua autoridade ao nível local pela indicação de “representantes” gera uma série de conflitos internos aos grupos tribais africanos; no caso dos Bemba, contribui de forma significativa para a desestabilização das formas locais de autoridade, assim como colabora para as alterações nos padrões tradicionais de produção e distribuição da comida, gerando a diminuição drástica na produção de alimentos. Fato este ainda reforçado pela migração de um grupo expressivo de nativos para trabalhar como assalariados nas minas de extração de cobre da região da África do Sul, excluindo das aldeias a força de trabalho masculina. Durante os três anos de trabalho de campo entre os Bemba Richards e sua comitiva não se estabeleceu definitivamente em um lugar específico, ao contrário, passava dois a três meses em cada comunidade viajando por entre as diversas vilas. Ela acreditava que esta circulação lhe seria favorável para a produção de um olhar comparativo, além de poder melhor observar os efeitos das mudanças econômicas e sociais ocorridas neste grupo. Por conta desta inserção, Richards nunca se tornou “nativa” entre os Bemba, mas por outro lado, procurou também se diferenciar dos representantes da administração oficial. Os Bemba a consideravam uma autoridade que se preocupava com as crianças, o trabalho das mulheres ou a falta de alimentos, procurando se comunicar com eles em sua própria língua. Vale destacar que nenhum administrador deste distrito rhodesiano dominava o dialeto bemba, configurando-se uma situação de comunicação comprometida entre os administradores e os nativos. A etnografia, como proposta por Malinowski, proporcionou um ganho de qualidade a sua investigação ao possibilitar o estabelecimento de correlações entre aspectos diferentes daquela sociedade e a atuação de seus membros. Este método propiciava ao pesquisador o estudo da realidade viva e não um esquema abstrato das relações sociais. A integração das instituições sociais conferia vitalidade àquela forma coletiva, que compreendia e direcionava motivos e valores humanos, moldando e respondendo às cultural needs, ou seja, um grupo de necessidades a serem preenchidas para a sobrevivência. Apesar de Richards mover com flexibilidade entre as duas teorias presentes na época, o funcionalismo e o estrutural funcionalismo, sua opção teórica permaneceu na análise das instituições. Minimizando a distância entre o recorte funcionalista e o 6 estrutural, nos moldes de Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard, afirmava ser esta uma diferença de prioridades.1. Preferia ver a estrutura como um aspecto da cultura nativa. Por outro lado diferenciava-se de seu orientador por sua consciência dos efeitos do contato europeu naquelas comunidades; ao contrário de ignorar a mudança social, declarava-se convencida que o tipo de informação e análise que a etnografia podia prover seria de grande valor para políticos e administradores coloniais, iluminando os problemas sociais a serem enfrentados. “I believe that there is also something of value in having research done by field workers who are assuming for the moment that customs have a purpose that the society works and that the Africans is right, not wrong.” (Richards apud Mintz, 2000: 174) 3. A realidade de um sistema nutricional Richards publica, em 1932, Hunger and Work in a Savage Tribe: a functional study of nutrition among southern Bantu, monografia resultante de sua titulação em Antropologia na London School of Economics. Dedicado a Malinowski, este trabalho elege como tema os fatos da nutrição numa sociedade tribal, em afinidade aos interesses de seu orientador a respeito das relações entre a natureza coletiva humana e os “impulsos primitivos”. Tal como sexo, a alimentação se constituía como necessidade essencial, através da qual ocorreria a formação de um sistema social que permitisse a integração do indivíduo com sua tradição; sistema este constituído do funcionamento de suas instituições no esforço cooperativo para a sobrevivência. Através de uma etnografia lúcida, nos termos de Gladstone (1986) Richards vai apresentando ao longo deste trabalho a complexidade da dinâmica social que envolve o simples ato de comer. Em acordo à ruptura com os valores evolucionistas, cuja escala de progresso supunha formas pouco elaboradas de existência entre os “primitivos”, ela nos demonstra a realidade de um sistema nutricional situado, envolvido nas tramas complexas dos modos de vida daquela população. Compostas pela integração entre diferentes instituições e relações sociais, as atividades direcionadas a satisfação da necessidade alimentar dependia de um grande número 1 Ao escrever a resenha do livro Os Nuer, no momento de sua publicação, Richards comenta não achar necessária o destaque a esta dimensão, uma vez que não existiria estrutura sem cultura e vice-versa.. cf. http://classes.yale.edu/02-03/anth500a/projects/project_sites/01_margaretten/audrey_richards 7 de tarefas sejam elas imediatas, preparatórias ou produtivas..Ao destacar o nativo Bemba como um ser imbricado em relações sociais mediadas pela reciprocidade - a atividade alimentar não se excluía deste cenário - Richards procura destacar o fato de que comer na sociedade Bemba envolvia o estabelecimento, e afirmação constante, de laços nutricionais. Laços primários, que garantia o acesso do alimento através das relações de parentesco no grupo doméstico, e secundários quando estas relações envolvia um contexto social mais amplo, onde o nativo passa a fazer parte do sistema de produção da tribo. Os laços nutricionais seriam, portanto, o imprescindível estabelecimento de vínculos sociais através dos quais os indivíduos teriam acesso a produção coletiva dos alimentos. Tendo como princípio, ou valor, a cooperação social, estas relações se sintonizavam aos diferentes estágios no ciclo de vida dos nativos. Desde o primeiro momento da vida infantil, a amamentação, nutrir-se se define como um processo interligado ao processo de socialização, pois na medida em que cresce, a criança Bemba é ensinada a mediar suas necessidades alimentares através de laços familiares, fundamentados na reciprocidade, até atingir a maturidade quando passa a atuar no nível mais amplo, envolvendo as relações entre aldeias, tribos e até etnias diferentes, na produção da comida como caça, pesca, coleta ou plantio. “We shall see how these early childish sentiments are modified as the individual grow up, and comes himself to share the interests and kinship organization to include nutritive ties between tribes and clans”2. A nutrição, neste sentido, deixa de ser abordada como uma simples questão de ingestão de nutrientes ou de abastecimento para ser compreendida como resultante de um conjunto complexo de instituições através da qual a comida é produzida, partilhada e distribuída. Interessante observar como a autora vai ampliando a discussão a respeito da organização de parentesco de forma a incluir os laços nutricionais que interligavam tribos e clãs, ou seja, descortinar as relações de cooperação na produção de alimento demandava a compreensão a dinâmica das regras de parentesco naquela sociedade que aos olhos de um observador menos esclarecido não poderiam estar visíveis. . Considerada por Mintz (2000:174) como a melhor monografia no campo da antropologia da alimentação, Land, Labor and Diet in Northern Rhodesia: an Economic Study of Bemba Tribe, publicado em 1939 já demonstra um momento de maior maturidade intelectual de Richards, onde se entrevê, não somente a intenção de um trabalho interdisciplinar envolvendo profissionais de outras áreas, como também 2 http://classes.yale.edu/02-03/anth500a/projects/project_sites/01_margaretten/audrey_richards 8 maior autonomia reflexiva em relação aos marcos teóricos funcionalistas. Kuper (1999), entretanto, destaca o fato desta obra inspirar-se em Coral Gardens and their Magic: a study of the methods of tilling the soil and of agricultural rites in the Trobriand Islands de autoria de Malinowski, estudo este publicado em 1935 dedicado às práticas de agricultura entre os trobriandeses, envolvidas no complexo cenário social que subentendia o domínio de técnicas e saberes específicos bem como de uma atividade cerimonial. . Land, labor and diet se dedica com mais vagar à realidade da fome entre os Bemba, procurando abordá-la como resultante de fatores sociais, culturais e políticos, que podem influenciar a produção, distribuição e consumo da comida. Se em seu primeiro livro Richards tinha como linha de análise a fome (como instinto) moldando as relações humanas, nesta obra se liberta da ideia de necessidades biológicas fundamentais para refletir sobre a forma como a realidade cultural é capaz de moldar as práticas alimentares. É na perspectiva de se analisar a fome como fato social que a autora se propõe a considerá-la na perspectiva dos próprios nativos. A primeira questão que destaca é o fato de que diferentemente dos padrões europeus, ao menos entre as classes favorecidas ,a fome é constituinte da sociedade bemba. Faz parte de um ciclo anual de alternância entre os “meses de comida” e os meses de sua escassez. Num ambiente de incerteza quase cotidiana em relação ao suprimento, a comida, de acordo com Richards, se define como um dos temas de maior interesse e preocupação entre os nativos, figurando como assunto frequente nas conversas. Neste sentido, os Bemba não diferenciavam classe, gênero, idade pela quantidade de comida que tinham acesso - confirmando algumas conclusões de Goody (1982), anos mais tarde, em pesquisa realizada na África Ocidental - mas pela certeza do suprimento. A garantia do fluxo alimentar para os Bantu depende principalmente da operação de laços de reciprocidade, prestígio e, no caso do homem adulto, do número de esposas que é capaz de manter, pois é a mulher que coleta, prepara e cozinha o cereal básico de sua dieta nutricional, o painço. A comida, portanto, é capaz de expressar sentimentos ou veicular expectativas em relação ao desempenho dos papéis sociais, como os comentários que circulavam entre eles de sogras que dissolveram o casamento de suas filhas por oferecerem uma comida mal preparada para o genro. Ao se propor uma visão mais ampla dos fatores intervenientes à dinâmica nutricional na sociedade Bemba, este livro traz a tônica de um manual informativo para administradores de conteúdo propositivo a reformas necessárias. A associação entre a questão da nutrição com a terra e o trabalho, conforme registrado no título, indica a amplitude da abordagem da questão da fome. Em ambiente de conflitos de terra, 9 tendo os Bemba progressivamente perdido espaço para os colonizadores, Richards procura se contrapor aos laudos coloniais que os considerava um grupo de pobres, preguiçosos, que não se interessavam pela posse da terra. Na verdade os Bemba operavam com uma noção ampliada de posse, e Richards insistia no fato de que para compreender a escassez de alimentos que assolava suas aldeias seria necessário apreender sua relação com o solo. No lugar de uma posse fixa de terras, eles cultivavam a terra de acordo com certas alianças políticas. As relações coloniais geravam impactos nesta lógica de ocupação, forçando-os a definição de um espaço delimitado de cultivo, que se reduzia progressivamente ante a pressão de fazendeiros e grandes agricultores diretamente relacionados a esta nova dinâmica. A desnutrição entre os Bemba associava-se à redução de áreas cultiváveis e à crescente migração da mão de obra para as minas de cobre, ocorrendo uma séria ruptura no sistema de cooperação. A desnutrição neste sentido associa=se prioritariamente a uma questão social, e não biológica na medida em que é a rede de instituições que os possibilitavam a produzir, distribuir e consumir sua comida. 4. Considerações finais Compreender o alcance das contribuições de Audrey Richards para uma reflexão antropológica das práticas alimentares requer relembrar o contexto acadêmico da época. O período de severa depressão no Reino Unido, particularmente entre os anos de 1927 a 1934, apresentava demandas mais urgentes do que preocupações com padrões ideais de dieta para a população. Num ambiente de ativismo médico, e do cientificismo das pesquisas bioquímicas, problemas nutricionais entre as crianças britânicas já haviam sido identificados, assim como providenciados programas de abono como forma de contornar este problema. A nutrição e a fome eram pontos da arena política defendidas por nutricionistas que, juntamente com veterinários, agrônomos e antropólogos construíram estratégias de investigações interdisciplinares como forma de superar a condição de profissionais marginais na tomada de decisões da administração colonial. Antes de Richards, equipe de John Boyd Orr já havia realizado estudos nutricionais comparativos na África, como a investigação da dieta de povos agricultores como os Kikuyu em contraposição aos Masai, dedicados ao pastoreio como atividade de subsistência. Embora tenha o mérito de pioneirismo tal estudo trazia o enfoque bioquímico, ignorando a realidade social destes grupos. 10 Por outro lado a situação dos povos da África central era preocupante, particularmente em relação a fome e desnutrição. No princípio da década de 30 a região central da África fora assolada por uma severa seca, além da devastação das plantações por pragas. A fome era uma questão que incomodava os administradores e ao contrário das crianças britânicas não havia perspectiva de qualquer tipo de abono para contornar este problema, nem havia relatos em profundidade sobre esta situação. Os estudos sobre costumes alimentares entre os Bemba vêm suprir esta carência de informações, procurando enfatizar que a “dieta” de um grupo social envolve aspectos sociais mais amplos. Contudo Richards não se furtou a uma análise nutricional no estrito senso, enviou amostras da alimentação bemba para o Laboratório de Nutrição do King’s College sob a coordenação de Robert MacCance e E. Widowson. Publicou posteriormente resultados desta investigação juntamente com Widowson, como parte de um projeto internacional sobre padrões dietéticos coordenado por J.B. Orr. Acreditava que fatores econômicos e sociais contribuíam para a compreensão da sobrevivência numa sociedade de pequena escala baseada na subsistência, tanto quanto a análise bioquímica de sua ingestão nutricional. Por este motivo foi também criativa ao se propor a medir a ingestão calórica dos nativos em tempos de fartura e escassez, assim como relacioná-la com o trabalho, lazer e as regras de tributos aos chefes que obrigavam os agricultores bemba a doarem parte de sua colheita. Queria conhecer o quanto homens, mulheres e crianças seriam capazes de minimizar a séria escassez de proteína, mas por outro lado, reconhecia a necessidade de se aprofundar nas relações entre ingestão de alimentos e instituições sociais, observando seu contexto político, econômico e funcional. Richards apresentou também um perfil inovador ao focar as relações entre trabalho feminino e subnutrição, que não tinha ainda sido estudado em seus aspectos socioeconômicos exceto por Mary Putman Jacob em 1870, que investigou a fisiologia da fatiga de mulheres urbanas em Nova York (Gardner, 1986). De fato, na sociedade Bemba às mulheres cabiam grande parte da responsabilidade da produção dos alimentos, havendo um descompasso entre tempo de trabalho e a ingestão de alimentos, particularmente no caso das mulheres, que trabalhavam demais e comiam de menos. A partir destas contribuições, como aponta Mintz (2001)mais atenção passou a ser dada para as variações intra-familiares do consumo alimentar, seja em termos de gênero ou de idade. Com a convicção da importância de fatores sociais e econômicos em que problemas aparentemente vinculados a uma ordem técnica, coube aos trabalhos de Audrey Richards a investigação, numa paráfrase a uma das clássicas publicações da Escola Britanica de Antropologia neste período, dos African Nutritional Systems. 11 Referências bibliográficas AUDREY Richards 1899-1984 : A functionalist and devotee of Malinowski or… Something more?. Disponível: http://classes.yale.edu/0203/anth500a/projects/project_sites/01_margaretten/audrey_richards.htm. Acessado em 12jun2013 FIRTH, Raymond. Audrey Richards. Man, 20 (2), 1985. pp. 342-344 GLADSTONE, JO. Significant Sister: autonomy and obligation in Audrey Richards early fieldwork. American Ethnologist 13(2), May, 1986. pp. 338-362. GOODY, Jack. Cooking, cuisine and class. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. KUPER, Adam. Antropólogos e Antropologia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978 KUPER, Adam. Among Anthropologists. London: Athlone press, 1999. MALINOWSKI, Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril, 1978. MALINOWSKI, Uma teoria científica de cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1970 MINTZ, Sidney. Sow’s Ears and Silver Linings. Current Anthropology, 41 (2), 2000. pp. 169-189. MINTZ, Sidney. Comida e antropologia. Uma breve revisão. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v.16, n.47, out.2001, pp.31-41. RICHARDS, Audrey. The Concept of Culture in Malinowski's Work. In FIRTH, R. (ed.), Man and Culture: An Evaluation of the Work of Bronislaw Malinowski. London: Routledge & Kegan, Paul, 1957. pp. 15-31 12 RICHARDS, Audrey.[1932] Hunger and work in a savage tribe: a functional study of nutrition among the Southern Bantu. London: Routledge, 2005 RICHARDS, Audrey. [1939] Land, work and diet in Northern Rhodesia: an economic study of the Bemba tribe. London: LIT Verlag, 1997. 13