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IV REUNIÃO EQUATORIA DE ANTROPOLOGIA/XII REUNIÃO DE
ANTROPÓLOGOS DO NORTE E NORDESTE
04 a 07 de agosto de 2012
Fortaleza – Ceará
Grupo de Trabalho 43: Saberes locais, regionais e transnacionais na interface entre
alimentação e cultura
Fome, dieta e cultura: as contribuições de Audrey Richards
para as relações entre antropologia e alimentação
Rogéria Campos de Almeida Dutra*
*Universidade Federal de Juiz de Fora. MG
[email protected]
1
Apesar da intensa atividade profissional e de seu papel fundamental no
processo de consolidação da antropologia britânica ao longo do século XX, Audrey
Richards é lembrada principalmente por sua condição de discípula de Malinowski, cuja
influência traz marcas profundas em seu pensamento desde as primeiras incursões
etnográficas. Contudo, suas contribuições extrapolam a esta relação na medida em
que sua longa trajetória se delineia pela inserção diversificada em
cenários
institucionais, seja a academia, sejam órgãos de fomento à pesquisa, ou de promoção
ao desenvolvimento das colônias africanas. Como uma das primeiras mulheres a
ingressarem na London School of Economics, assim como um dos primeiros
antropólogos a conduzir pesquisas em solo africano, ela confirma seu pioneirismo não
somente pela qualidade de seu trabalho de campo como também por inaugurar um
campo de investigação antropológica, as relações entre cultura e alimentação.
Audrey Isabel Richards (1899-1984) nasceu em Londres numa família
tradicional de classe média alta, de burocratas de alto escalão na administração
inglesa. Devido às atividades paternas, passou sua infância na Índia, retornando à
terra natal quando seu pai, advogado, foi lecionar em Oxford. A década de 20
configura-se como período de experiências variadas e indefinições para a jovem
Audrey, seus pais não julgavam pertinente a continuidade dos estudos, fato incomum
para uma mulher naquela época. Após
graduar-se em Ciências Naturais pela
Universidade de Cambridge vai para Alemanha em trabalho de ajuda humanitária
entre os pobres urbanos durante dois anos; no contexto de reconstrução social da
sociedade alemã pós-guerra foi que Richards despertou seu interesse pela nutrição,
na medida em que participava de programas que visavam o cuidado com as
necessidades alimentares e padrões nutricionais dos assistidos. Ao retornar à
Inglaterra trabalha durante quatro anos como secretária no Departamento do Trabalho
na Liga das Nações para então decidir-se a dar continuidade a seus estudos na
London School of Economics sob orientação de B. Malinowski. Com investigações
focadas no território africano Richards constrói sua trajetória como pesquisadora
através de diferentes incursões em campo: na Zambia (Rodésia do Norte entre os
anos 1930-31. 1933-34 e 1957), na região do Transvaal entre 1939-40, em Uganda
entre 1950-55. Através de um estudo cuidadoso do cotidiano dos nativos africanos,
procura dar continuidade ao novo padrão de pesquisa antropológica inaugurado por
seu orientador. È contemporânea de E.Evans-Pritchard, mas relacionou-se com
diferentes gerações de antropólogos, como Raymond Firth, Meyer Fortes ou Adam
Kuper. O reconhecimento por suas contribuições à Antropologia, contudo, não foi
2
suficiente para conferir-lhe posição de destaque na academia - como o cargo de
professor titular – apesar de ter lecionado na London School of Economics, University
of Witwatersrand na Africa do Sul e University of London.
Além de vasta produção em periódicos, destacam-se os livros: Hunger and
Work in a Savage Tribe: A Functional Study of Nutrition Among the Southern Bantu
(1932), Land, Labor and Diet in Northern Rhodesia: An Economic Study of the Bemba
Tribe (1939), Colonial Problems as a Challenge to the Social Sciences (1947),
Economic Development and Tribal Change: A Study of Immigrant Labour in Buganda
(1954), Chisungu: A Girl's Initiation Ceremony Among the Bemba of Northern
Rhodesia (1956).
Uma das marcas do trabalho de Richards é a combinação entre uma
predisposição a se envolver com problemas práticos e a abordagem interdisciplinar;
fato este que se revela pelos cargos desempenhados na administração colonial:
trabalhou no Colonial Social Science Research Council,
assumiu a diretoria do
Instituto de Pesquisas Sociais da África Oriental, do Centro de Estudos Africanos de
Cambridge, do African Sudies Association of the United Kingdom. Vale destacar que
foi a primeira mulher a assumir a presidência do Royal Anthropological Institute, além
de receber a Ordem do Império Britânico e tornar-se membro da Academia Britânica
de Ciências em 1969. Já ao final de sua vida, na década de 70 realizou uma pesquisa
numa pequena comunidade rural da Inglaterra, publicando juntamente com Marilyn
Strathern, em 1981, Kinship at the Core: An Anthropology of Elmdon, a Village in
North-west Essex in the Nineteen-Sixties.
1. Uma discípula de Malinowski
Não há um consenso entre aqueles que se dedicaram a refletir sobre a
consolidação Antropologia na primeira metade do século XX, sobre as reais marcas de
Malinowski no trabalho de Richards, enquanto alguns, como Kuper (1999) a veem
como uma discípula que nunca abandonou a ortodoxia das premissas funcionalistas,
outros (Mintz, 2000) defendem a flexibilização desta influência entrevista não somente
nos trabalhos posteriores, como também na tônica interdisciplinar de sua atuação. De
qualquer forma, há um consenso em dois aspectos, o primeiro refere-se à qualidade
do relacionamento entre Richards e Malinowski, se configurando este não somente
como professor e mentor de sua iniciação na Antropologia como amigo íntimo, uma
vez que Richards acompanhou de perto a vida familiar de seu professor e a educação
de suas filhas. O segundo refere-se a nítida marca malinowskiana em seu primeiro
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livro, Hunger and Work in a Savage Tribe , tanto em termos do tema,
de sua
abordagem teórica assim como metodológica.
O ambiente da London School of Economics, à época em que Richards
começa a assistir as aulas de Malinowski, estava associado ao clima de vanguarda, a
novas ideias de desenvolvimento social através de estudos aplicados, além de
representar um ambiente mais hospitaleiro para as aspirações femininas; uma
instituição ainda marginal frente a outras prestigiadas, mas capaz de acolher outsiders.
O perfil de Richards, advinda de uma formação em ciências naturais se adequava às
aspirações de Malinowski - na verdade as credenciais de Richards coincidiram com
seu interesse teórico - não somente por endossar a natureza do grupo de estudantes
que se reunia sob sua influência, advindo de diferentes áreas de formação, como
também por sua agenda teórica focada nas relações entre homem e cultura, mediada
pelas necessidades básicas de sobrevivência. Richards trazia como proposta inicial
de trabalho na London School of Economics estudar a história das ideias europeias
sobre “natureza” e “liberdade” em relação à biologia humana, mas é persuadida por
Malinowski a mudar seu foco para nutrição, tema à época de interesse no círculo
acadêmico e governamental, o que particularmente atraiu Richards, visualizando a
possibilidade de uma contribuição mais imediata e prática para as melhorias das
condições sociais.
Sua longa carreira acadêmica propiciou às novas gerações o testemunho da
história da antropologia britânica, dos passos que se fizeram fundamentais para sua
consolidação, mesmo que ao preço de julgamentos posteriores. A noção de cultura na
perspectiva funcionalista é um exemplo, pois apesar de suscetível a diversas críticas,
foi, a seu ver, a defesa de uma teoria da cultura que conferiu, na naquele momento o
espírito científico no pensamento antropológico.
“The polemic tone of some of the current writings now seen extreme, yet is
doubtful whether social anthropology would soon have established itself as a separate
discipline apart from archeology, technology or physical anthropology without
Malinowski efforts” (Richards, 1957:20)
Talvez por esta consciência, ou compreensão mais aprofundada de certas
propostas teóricas que lhe conferiu segurança para lidar com a dimensão cultural
mantendo ao longo de sua carreira a perspectiva de que os fatos sociais deveriam ser
explicados por sua função no sistema integrado da cultura. A ideia de cultura como o
arcabouço coerente de integração equilibrada entre as partes que compõem a
4
sociedade, ou seja, as instituições, cuja função seria a de assegurar a sobrevivência
de seus membros vai ter peso significativo na sua análise, particularmente em relação
a sua primeira pesquisa entre os Bemba como veremos adiante. Neste primeiro
momento, como estudante da London School of Economics, partilhar a ideia de cultura
como conjunto de crenças e costumes que visam preencher as necessidades
biológicas, psicológicas e sociais humanas vai possibilitar-lhe a escolha das práticas
alimentares como tema de investigação.. Como centro da análise malinowskiana, a
manutenção e reprodução da sociedade, vão ser investigadas através das funções de
manutenção e reprodução do próprio indivíduo, definindo-se o projeto de Richards de
análise da nutrição numa sociedade tribal africana o par complementar à investigação
sobre sexo entre os trobriandeses. Neste sentido, Richards já experimenta os efeitos
da discriminação de gênero àquela época, dedicando-se a um tema feminino e de
pouco interesse para a Antropologia Social (Mintz,2001), além de “estudar mulheres”,
com trabalho de campo numa sociedade matrilinear.
2. O trabalho de campo
A proposta de superação da perspectiva evolucionista elaborada por
Malinowski fundamentava-se tanto por um novo viés teórico, centrado na análise das
sociedades tribais em ação, como também por uma forma específica de acesso a esta
realidade, a pesquisa etnográfica. O trabalho de campo, a imersão do pesquisador na
sociedade estudada, o domínio da língua nativa, representavam uma ruptura ao
modelo
do
“antropólogo
erudito”,
marca
registrada
das
relações
coloniais
estabelecidas entre a Inglaterra e seus territórios.
Contudo, certo tom de colonialismo perdura nesta nova fase da antropologia,
apenas sob uma nova ordem de dominação, uma dominação esclarecida,
intencionalmente orientada por formas burocráticas e administrativas de gestão da
dominação, lançando-se mão, inclusive do trabalho do antropólogo para sua
viabilização. É neste sentido que administradores do regime colonial inglês
frequentavam as conferências de Malinowski. Do mesmo modo a inserção de Richards
no campo, traz esta marca: não somente a antropóloga-pesquisadora com sua
barraca, câmera fotográfica, bicicleta e um pequeno dicionário Bemba, mas uma
comitiva composta por assistentes, carregadores, uma nutricionista que a auxiliaria na
coleta e análise de amostras da dieta daquele povo, uma cozinheira, alguns membros
da administração colonial e criados.
5
No princípio da década de 30 a sociedade Bemba estava constituída por uma
população de cerca de 140000 membros, dispersos em vasta área através de uma
organização social descentralizada. Já no final do século XIX, os Bemba haviam
acatado a dominação colonial inglesa sem grande resistência, e viviam em pequenas
vilas, através de uma organização tribal fundamentada em grupos de parentesco, de
natureza matrilinear. A imposição da Indirect Rule, em 1929, a partir da qual os
administradores britânicos passaram a exercer sua autoridade ao nível local pela
indicação de “representantes” gera uma série de conflitos internos aos grupos tribais
africanos; no caso dos Bemba, contribui de forma significativa para a desestabilização
das formas locais de autoridade, assim como colabora para as alterações nos padrões
tradicionais de produção e distribuição da comida, gerando a diminuição drástica na
produção de alimentos. Fato este ainda reforçado pela migração de um grupo
expressivo de nativos para trabalhar como assalariados nas minas de extração de
cobre da região da África do Sul, excluindo das aldeias a força de trabalho masculina.
Durante os três anos de trabalho de campo entre os Bemba Richards e sua
comitiva não se estabeleceu definitivamente em um lugar específico, ao contrário,
passava dois a três meses em cada comunidade viajando por entre as diversas vilas.
Ela acreditava que esta circulação lhe seria favorável para a produção de um olhar
comparativo, além de poder melhor observar os efeitos das mudanças econômicas e
sociais ocorridas neste grupo. Por conta desta inserção, Richards nunca se tornou
“nativa” entre os Bemba, mas por outro lado, procurou também se diferenciar dos
representantes da administração oficial. Os Bemba a consideravam uma autoridade
que se preocupava com as crianças, o trabalho das mulheres ou a falta de alimentos,
procurando se comunicar com eles em sua própria língua. Vale destacar que nenhum
administrador deste distrito rhodesiano dominava o dialeto bemba, configurando-se
uma situação de comunicação comprometida entre os administradores e os nativos.
A etnografia, como proposta por Malinowski, proporcionou um ganho de
qualidade a sua investigação ao possibilitar o estabelecimento de correlações entre
aspectos diferentes daquela sociedade e a atuação de seus membros. Este método
propiciava ao pesquisador o estudo da realidade viva e não um esquema abstrato das
relações sociais. A integração das instituições sociais conferia vitalidade àquela forma
coletiva, que compreendia e direcionava motivos e valores humanos, moldando e
respondendo às cultural needs, ou seja, um grupo de necessidades a serem
preenchidas para a sobrevivência.
Apesar de Richards mover com flexibilidade entre as duas teorias presentes na
época, o funcionalismo e o estrutural funcionalismo, sua opção teórica permaneceu
na análise das instituições. Minimizando a distância entre o recorte funcionalista e o
6
estrutural, nos moldes de Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard, afirmava ser esta uma
diferença de prioridades.1. Preferia ver a estrutura como um aspecto da cultura nativa.
Por outro lado diferenciava-se de seu orientador por sua consciência dos efeitos do
contato europeu naquelas comunidades; ao contrário de ignorar a mudança social,
declarava-se convencida que o tipo de informação e análise que a etnografia podia
prover seria de grande valor para políticos e administradores coloniais, iluminando os
problemas sociais a serem enfrentados.
“I believe that there is also something of value in having research done by field
workers who are assuming for the moment that customs have a purpose that the
society works and that the Africans is right, not wrong.” (Richards apud Mintz, 2000:
174)
3. A realidade de um sistema nutricional
Richards publica, em 1932, Hunger and Work in a Savage Tribe: a functional
study of nutrition among southern Bantu, monografia resultante de sua titulação em
Antropologia na London School of Economics. Dedicado a Malinowski, este trabalho
elege como tema os fatos da nutrição numa sociedade tribal, em afinidade aos
interesses de seu orientador a respeito das relações entre a natureza coletiva humana
e os “impulsos primitivos”. Tal como sexo, a alimentação se constituía como
necessidade essencial, através da qual ocorreria a formação de um sistema social que
permitisse a integração do indivíduo com sua tradição; sistema este constituído do
funcionamento de suas instituições no esforço cooperativo para a sobrevivência.
Através de uma etnografia lúcida, nos termos de Gladstone (1986) Richards vai
apresentando ao longo deste trabalho a complexidade da dinâmica social que envolve
o simples ato de comer. Em acordo à ruptura com os valores evolucionistas, cuja
escala de progresso supunha formas pouco elaboradas de existência entre os
“primitivos”, ela nos demonstra a realidade de um sistema nutricional situado,
envolvido nas tramas complexas dos modos de vida daquela população. Compostas
pela integração entre diferentes instituições e relações sociais, as atividades
direcionadas a satisfação da necessidade alimentar dependia de um grande número
1
Ao escrever a resenha do livro Os Nuer, no momento de sua publicação, Richards comenta não achar
necessária o destaque a esta dimensão, uma vez que não existiria estrutura sem cultura e vice-versa.. cf.
http://classes.yale.edu/02-03/anth500a/projects/project_sites/01_margaretten/audrey_richards
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de tarefas sejam elas imediatas, preparatórias ou produtivas..Ao destacar o nativo
Bemba como um ser imbricado em relações sociais mediadas pela reciprocidade - a
atividade alimentar não se excluía deste cenário - Richards procura destacar o fato de
que comer na sociedade Bemba envolvia o estabelecimento, e afirmação constante,
de laços nutricionais. Laços primários, que garantia o acesso do alimento através das
relações de parentesco no grupo doméstico, e secundários quando estas relações
envolvia um contexto social mais amplo, onde o nativo passa a fazer parte do sistema
de produção da tribo. Os laços nutricionais seriam, portanto, o imprescindível
estabelecimento de vínculos sociais através dos quais os indivíduos teriam acesso a
produção coletiva dos alimentos. Tendo como princípio, ou valor, a cooperação social,
estas relações se sintonizavam aos diferentes estágios no ciclo de vida dos nativos.
Desde o primeiro momento da vida infantil, a amamentação, nutrir-se se define como
um processo interligado ao processo de socialização, pois na medida em que cresce,
a criança Bemba é ensinada a mediar suas necessidades alimentares através de laços
familiares, fundamentados na reciprocidade, até atingir a maturidade quando passa a
atuar no nível mais amplo, envolvendo as relações entre aldeias, tribos e até etnias
diferentes, na produção da comida como caça, pesca, coleta ou plantio.
“We shall see how these early childish sentiments are modified as the individual
grow up, and comes himself to share the interests and kinship organization to include
nutritive ties between tribes and clans”2.
A nutrição, neste sentido, deixa de ser abordada como uma simples questão
de ingestão de nutrientes ou de abastecimento para ser compreendida
como
resultante de um conjunto complexo de instituições através da qual a comida é
produzida, partilhada e distribuída. Interessante observar como a autora vai ampliando
a discussão a respeito da organização de parentesco de forma a incluir os laços
nutricionais que interligavam tribos e clãs, ou seja, descortinar as relações de
cooperação na produção de alimento demandava a compreensão a dinâmica das
regras de parentesco naquela sociedade que aos olhos de um observador menos
esclarecido não poderiam estar visíveis. .
Considerada por Mintz (2000:174) como a melhor monografia no campo da
antropologia da alimentação, Land, Labor and Diet in Northern Rhodesia: an Economic
Study of Bemba Tribe, publicado em 1939 já demonstra um momento de maior
maturidade intelectual de Richards, onde se entrevê, não somente a intenção de um
trabalho interdisciplinar envolvendo profissionais de outras áreas, como também
2
http://classes.yale.edu/02-03/anth500a/projects/project_sites/01_margaretten/audrey_richards
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maior autonomia reflexiva em relação aos marcos teóricos funcionalistas. Kuper
(1999), entretanto, destaca o fato desta obra inspirar-se em Coral Gardens and their
Magic: a study of the methods of tilling the soil and of agricultural rites in the Trobriand
Islands de autoria de Malinowski, estudo este publicado em 1935 dedicado às práticas
de agricultura entre os trobriandeses, envolvidas no complexo cenário social que
subentendia o domínio de técnicas e saberes específicos bem como de uma atividade
cerimonial. .
Land, labor and diet se dedica com mais vagar à realidade da fome entre os
Bemba, procurando abordá-la como resultante de fatores sociais, culturais e políticos,
que podem influenciar a produção, distribuição e consumo da comida. Se em seu
primeiro livro Richards tinha como linha de análise a fome (como instinto) moldando as
relações humanas, nesta obra se liberta da ideia de necessidades biológicas
fundamentais para refletir sobre a forma como a realidade cultural é capaz de moldar
as práticas alimentares.
É na perspectiva de se analisar a fome como fato social que a autora se propõe
a considerá-la na perspectiva dos próprios nativos. A primeira questão que destaca é o
fato de que diferentemente dos padrões europeus, ao menos entre as classes
favorecidas ,a fome é constituinte da sociedade bemba. Faz parte de um ciclo anual
de alternância entre os “meses de comida” e os meses de sua escassez. Num
ambiente de incerteza quase cotidiana em relação ao suprimento, a comida, de acordo
com Richards, se define como um dos temas de maior interesse e preocupação entre
os nativos, figurando como assunto frequente nas conversas.
Neste sentido, os
Bemba não diferenciavam classe, gênero, idade pela quantidade de comida que
tinham acesso - confirmando algumas conclusões de Goody (1982), anos mais tarde,
em pesquisa realizada na África Ocidental -
mas pela certeza do suprimento. A
garantia do fluxo alimentar para os Bantu depende principalmente da operação de
laços de reciprocidade, prestígio e, no caso do homem adulto, do número de esposas
que é capaz de manter, pois é a mulher que coleta, prepara e cozinha o cereal básico
de sua dieta nutricional, o painço. A comida, portanto, é capaz de expressar
sentimentos ou veicular expectativas em relação ao desempenho dos papéis sociais,
como os comentários que circulavam entre eles de sogras que dissolveram o
casamento de suas filhas por oferecerem uma comida mal preparada para o genro.
Ao se propor uma visão mais ampla dos fatores intervenientes à dinâmica
nutricional na sociedade Bemba, este livro traz a tônica de um manual informativo para
administradores de conteúdo propositivo a reformas necessárias. A associação entre a
questão da nutrição com a terra e o trabalho, conforme registrado no título, indica a
amplitude da abordagem da questão da fome. Em ambiente de conflitos de terra,
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tendo os Bemba progressivamente perdido espaço para os colonizadores, Richards
procura se contrapor aos laudos coloniais que os considerava um grupo de pobres,
preguiçosos, que não se interessavam pela posse da terra. Na verdade os Bemba
operavam com uma noção ampliada de posse, e Richards insistia no fato de que para
compreender a escassez de alimentos que assolava suas aldeias seria necessário
apreender sua relação com o solo. No lugar de uma posse fixa de terras, eles
cultivavam a terra de acordo com certas alianças políticas. As relações coloniais
geravam impactos nesta lógica de ocupação, forçando-os a definição de um espaço
delimitado de cultivo, que se reduzia progressivamente ante a pressão de fazendeiros
e grandes agricultores diretamente relacionados a esta nova dinâmica. A desnutrição
entre os Bemba associava-se à redução de áreas cultiváveis e à crescente migração
da mão de obra para as minas de cobre, ocorrendo uma séria ruptura no sistema de
cooperação. A desnutrição neste sentido associa=se prioritariamente a uma questão
social, e não biológica na medida em que é a rede de instituições que os
possibilitavam a produzir, distribuir e consumir sua comida.
4. Considerações finais
Compreender o alcance das contribuições de Audrey Richards para uma
reflexão antropológica das práticas alimentares requer relembrar o contexto
acadêmico da época. O período de severa depressão no Reino Unido, particularmente
entre os anos de 1927 a 1934, apresentava demandas mais urgentes do que
preocupações com padrões ideais de dieta para a população. Num ambiente de
ativismo médico, e do cientificismo das pesquisas bioquímicas, problemas nutricionais
entre as crianças britânicas já haviam sido identificados, assim como providenciados
programas de abono como forma de contornar este problema.
A nutrição e a fome eram pontos da arena política defendidas por nutricionistas
que, juntamente com veterinários, agrônomos e antropólogos construíram estratégias
de investigações interdisciplinares como forma de superar a condição de profissionais
marginais na tomada de decisões da administração colonial. Antes de Richards,
equipe de John Boyd Orr já havia realizado estudos nutricionais comparativos na
África, como a investigação da dieta de povos agricultores como os Kikuyu em
contraposição aos Masai, dedicados ao pastoreio como atividade de subsistência.
Embora tenha o mérito de pioneirismo tal estudo trazia o enfoque bioquímico,
ignorando a realidade social destes grupos.
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Por outro lado a situação dos povos da África central era preocupante,
particularmente em relação a fome e desnutrição. No princípio da década de 30 a
região central da África fora assolada por uma severa seca, além da devastação das
plantações por pragas. A fome era uma questão que incomodava os administradores e
ao contrário das crianças britânicas não havia perspectiva de qualquer tipo de abono
para contornar este problema, nem havia relatos em profundidade sobre esta situação.
Os estudos sobre
costumes alimentares entre os Bemba vêm suprir esta
carência de informações, procurando enfatizar que a “dieta” de um grupo social
envolve aspectos sociais mais amplos. Contudo Richards não se furtou a uma análise
nutricional no estrito senso, enviou amostras da alimentação bemba para o Laboratório
de Nutrição do King’s College sob a coordenação de Robert MacCance e E.
Widowson. Publicou posteriormente resultados desta investigação juntamente com
Widowson, como parte de um projeto internacional sobre padrões dietéticos
coordenado por J.B. Orr. Acreditava que fatores econômicos e sociais contribuíam
para a compreensão da sobrevivência numa sociedade de pequena escala baseada
na subsistência, tanto quanto a análise bioquímica de sua ingestão nutricional. Por
este motivo foi também criativa ao se propor a medir a ingestão calórica dos nativos
em tempos de fartura e escassez, assim como relacioná-la com o trabalho, lazer e as
regras de tributos aos chefes que obrigavam os agricultores bemba a doarem parte de
sua colheita. Queria conhecer o quanto homens, mulheres e crianças seriam capazes
de minimizar a séria escassez de proteína, mas por outro lado, reconhecia a
necessidade de se aprofundar nas relações entre ingestão de alimentos e instituições
sociais, observando seu contexto político, econômico e funcional.
Richards apresentou também um perfil inovador ao focar as relações entre
trabalho feminino e subnutrição, que não tinha ainda sido estudado em seus aspectos
socioeconômicos exceto por Mary Putman Jacob em 1870, que investigou a fisiologia
da fatiga de mulheres urbanas em Nova York (Gardner, 1986). De fato, na sociedade
Bemba às mulheres cabiam grande parte da responsabilidade da produção dos
alimentos, havendo um descompasso entre tempo de trabalho e a ingestão de
alimentos, particularmente no caso das mulheres, que trabalhavam demais e comiam
de menos. A partir destas contribuições, como aponta Mintz (2001)mais atenção
passou a ser dada para as variações intra-familiares do consumo alimentar, seja em
termos de gênero ou de idade.
Com a convicção da importância de fatores sociais e econômicos em que
problemas aparentemente vinculados a uma ordem técnica, coube aos trabalhos de
Audrey Richards a investigação, numa paráfrase a uma das clássicas publicações da
Escola Britanica de Antropologia neste período, dos African Nutritional Systems.
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Referências bibliográficas
AUDREY Richards 1899-1984 : A functionalist and devotee of Malinowski or…
Something more?. Disponível: http://classes.yale.edu/0203/anth500a/projects/project_sites/01_margaretten/audrey_richards.htm. Acessado em
12jun2013
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Man and Culture: An Evaluation of the Work of Bronislaw Malinowski. London:
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study of the Bemba tribe. London: LIT Verlag, 1997.
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