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Arq Bras Cardiol
2001; 77: 69-72.
e cols
RelatoIkari
de Caso
Anomalia de Uhl
Anomalia de Uhl. Diagnóstico Diferencial e Indicação de
Transplante Cardíaco em Lactente
Nana Miura Ikari, Estela Azeka, Vera Demarchi Aiello, Edmar Atik, Miguel Barbero-Marcial, Munir Ebaid
São Paulo, SP
Lactente, oito meses de vida portadora de anomalia de
Uhl, submetida a transplante cardíaco com sucesso. São discutidos, aspectos clínicos, exames complementares, achados
anatômicos e diagnóstico diferencial da anomalia.
O diagnóstico da anomalia de Uhl, no passado, era
realizado geralmente na autópsia. Atualmente, com o desenvolvimento dos métodos gráficos e imagens, é possível
o diagnóstico clínico precoce com mais acerto, embora as
controvérsias a respeito da etiopatogenia permaneçam ainda obscuras. Neste artigo, relatamos os aspectos clínicos,
exames complementares, como: radiografia de tórax,
eletrocardiograma, ecocardiograma, ressonância magnética, estudo hemodinâmico e o anatomopatológico do coração de uma lactente com anomalia de Uhl, submetida a
transplante cardíaco com sucesso.
Relato do caso
Lactente, de oito meses de idade, do sexo feminino,
apresentou-se com história de déficit pôndero-estatural
desde os três meses e com insuficiência cardíaca congestiva desde os seis meses de idade.
Ao exame físico, encontrava-se em bom estado geral,
com taquipnéia leve, acianótica, pulsos presentes e simétricos. No precórdio, observavam-se impulsões sistólicas na
borda esternal esquerda baixa. Na ausculta cardíaca, notava-se sopro sistólico discreto em borda esternal esquerda
baixa. Havia hepatomegalia moderada.
Na radiografia de tórax (fig. 1), observou-se cardiomegalia acentuada com discreto aumento da trama vascular
pulmonar. O eletrocardiograma mostrava sobrecarga atrial
e ventricular direita (fig. 2).
Instituto do Coração do Hospital das Clinicas - FMUSP
Correspondência: Nana Miura Ikari – InCor - Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44
– 05403-000 – São Paulo, SP - e-mail: [email protected]
Recebido para publicação em 15/6/00
Aceito em 20/9/00
Ecocardiograma com Doppler revelou insuficiência tricúspide e dilatação acentuada do ventrículo direito com hipocinesia difusa, presença de derrame pericárdico discreto
e trombo na parede anterior de via de entrada de ventrículo
direito. A fração de encurtamento de ventrículo esquerdo
era de 36%.
A angioventriculografia radioisotópica revelou fração
de ejeção do ventrículo esquerdo de 35% e do ventrículo
direito de 20%.
Realizado cateterismo cardíaco, foi confirmado presença de acentuada dilatação de átrio e ventrículo direitos,
insuficiência tricúspide acentuada e presença de trombo em
ventrículo direito A manometria mostrou pressões no átrio
direito de 14mmHg de média e no ventrículo direito e tronco
pulmonar de 20/14mmHg (fig. 3).
A ressonância magnética mostrou, além do aumento
acentuado do átrio direito, nítida diminuição da espessura
da parede do ventrículo direito.
Apesar das medidas terapêuticas, não se observou
melhora clínica. A paciente foi submetida a transplante cardíaco ortotópico com 11 meses de idade, evoluindo clinicamente bem seis meses após o procedimento.
Estudo anatomopatológico - O segmento cardíaco analisado constava dos ventrículos e da maior parte do átrio
direito, além de segmentos proximais do tronco pulmonar e
da aorta ascendente. A valva tricúspide estava inserida em
posição habitual, sem acolamentos de cúspides, porém com
dilatação moderada do anel valvar. As suas cordas eram finas e delicadas. O ventrículo direito mostrava-se dilatado e
suas paredes apresentavam coloração esbranquiçada e espessura extremamente afilada (fig. 4). Cortes transversais
mostraram substituição quase completa do miocárdio da
parede livre do ventrículo direito por tecido esbranquiçado,
poupando o septo ventricular e poucas trabéculas e músculos papilares (fig. 5). Notou-se ainda a presença de um trombo mural de 0,8cm de diâmetro, aderido ao endocárdio da
parede diafragmática do ventrículo direito, na via de entrada. O ventrículo esquerdo tinha sua parede com espessura
preservada e discreta dilatação da luz. Os cortes histológicos mostraram extensas faixas da parede ventricular direita
Arq Bras Cardiol, volume 77 (nº 1), 69-72, 2001
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Anomalia de Uhl
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Fig. 1 - Radiografia de tórax mostra acentuada cardiomegalia.
constituídas por tecido conjuntivo fibroso, tendo de um
lado o endocárdio e do outro o epicárdio com aspecto focal
e especificamente junto ao epicárdio. Foram observados
acúmulos de células inflamatórias linfo-plasmocitárias. Em
outras regiões, havia fibras miocárdicas remanescentes em
meio a quantidades variáveis de tecido fibroso.
Discussão
Osler 1 foi o primeiro, em 1905, a relatar um coração com
Fig. 2 - Eletrocardiograma revelando sobrecarga das câmaras direitas.
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parede muito fina, como se fosse papel pergaminho. Em
1949, Uhl 2 descreveu seu primeiro caso ao realizar necropsia em criança de oito meses de idade. Coincidentemente,
em 1952 foram publicados dois artigos, este último (Uhl) em
criança e outro por Castleman e Towne 3 em adulto, relatando a perda de miocárdio no ventrículo direito, e a parede fina,
com raras fibras musculares. Em ambos, não existiam antecedentes de processos inflamatórios por miocardite ou lesões obstrutivas nas artérias coronárias, que pudessem explicar a destruição do miocárdio.
Anomalia de Uhl tem sido relatada na literatura médica
mundial, com este epônimo, seja na sua forma isolada ou em
associação com outras doenças do coração. Outros nomes
foram também utilizados, como ectasia do ventrículo direito,
aplasia congênita do miocárdio do ventrículo direito, infiltração gordurosa ou lipomatose, displasia miocárdica idiopática do ventrículo direito e ausência do miocárdio do ventrículo direito.
Fontaine e cols. 4, em 1979, descreveram outra entidade
com incidência maior, a displasia arritmogênica do ventrículo direito, cuja lesão é caracterizada pela deficiência localizada e substituição por tecido fibroadiposo do miocárdio
ventricular.
Estudos recentes sobre a anomalia de Uhl 5 demonstraram que é uma doença diferente da displasia arritmogênica do
ventrículo direito, com aspectos morfológicos e clínicos distintos, como, história familiar, sexo, idade, modo de apresentação clínica, morte induzida por exercício, anomalias associadas, aspectos morfológicos, etiologia e patogênese.
No caso descrito, a criança não apresentava antecedentes familiares de anomalia de Uhl, o que poderia ocorrer
na displasia arritmogênica do ventrículo direito. Quanto ao
sexo, há predomínio do sexo masculino com incidência de
56% na anomalia de Uhl e de 70% na displasia arritmogênica.
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Ikari e cols
Anomalia de Uhl
Fig. 3 - Cateterismo cardíaco direito com atriografia e ventriculografia revelando dilatação acentuada das câmaras direitas e regurgitação tricuspídea.
Fig. 5 - Cortes macroscópicos transversais do coração, mostrando ventrículo direito
dilatado, com paredes afiladas e substituição fibrosa do miocárdio. O septo
ventricular e o ventrículo esquerdo estão preservados.
Fig. 4 - Aspecto macroscópico do coração revelando ventrículo direito dilatado
com paredes finas.
O quadro clínico predominante é de insuficiência cardíaca na doença de Uhl, como em nosso relato. Queixas
como palpitação, síncope, taquicardia ventricular e morte
súbita, muitas vezes induzidas pelos exercícios físicos, estão mais relacionados à displasia arritmogênica 6,7. Nesta
paciente, a anomalia de Uhl se manifestou com insuficiência
cardíaca congestiva refratária, presença de trombo em via de
entrada de ventrículo direito, culminando com a indicação de
transplante cardíaco ortotópico, e que na nossa Instituição
(InCor) apresenta curva de sobrevida atuarial de 90% em um
ano e 78,2% em seis anos 8.
Na revisão feita por Gerlis e cols. 9, constatou-se que a
denominação anomalia de Uhl foi utilizada em muitos casos
hoje em dia descritos como displasia arritmogênica do
ventrículo direito. Na anomalia de Uhl, há determinados aspectos morfológicos, como ausência completa do miocár-
dio da parede parietal do ventrículo direito, composta por
superfícies de endocárdio e epicárdio sem interposição de
tecido gorduroso entre estas camadas, como observado no
coração desta criança. Em contraste, na displasia arritmogênica ocorre substituição por tecido fibroadiposo na parede
do ventrículo direito.
Apesar de vários relatos, ainda não há explicação razoável para a causa da falta de miocárdio no ventrículo direito. Discute-se a falta de desenvolvimento na vida embrionária; segundo Uhl, ocorre uma falha no desenvolvimento
embriológico do miocárdio do ventrículo direito e de acordo
com Dalla Volta 10, uma sensibilidade maior do ventrículo
direito exposto a agressões na vida intra-uterina pelo aumento da pressão e da resistência, superiores àquelas do
ventrículo esquerdo. Recentemente, a hipótese de que o
miocárdio do ventrículo direito substituído por meio de
processo de apoptose de miocardiócitos tem sido cogitada
e reforçada por estudos de biologia molecular 11.
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Ikari e cols
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O aspecto histológico observado no nosso caso permite a hipótese de um processo inflamatório ocorrido previamente no miocárdio, com substituição fibrosa parcial da parede. Todavia, inúmeros pontos ainda necessitam de esclarecimentos, como por exemplo, o envolvimento exclusivo do
ventrículo direito e o possível agente etiológico do processo.
Quanto à semelhança com a displasia arritmogênica
do ventrículo direito, é legítimo considerar a hipótese de que
ambas as entidades (embora distintas do ponto de vista
morfológico) tenham a mesma etiopatogenia, porém, ocorrida em diferentes épocas da vida.
Agradecimentos
À Dra. Maria Aparecida Bhering, pelas valiosas sugestões sobre o paciente.
Referências
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2.
3.
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