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1.
Introdução
À primeira vista, parece que qualquer expedição que pesquisa o discurso
cotidiano navegará, apenas, por águas amplamente conhecidas. Afinal, na vida préteórica do nosso cotidiano, usamos e interpretamos as palavras “discurso” e
“cotidiano” naturalmente, i.e., com uma certa ingenuidade que se baseia em nosso
senso comum, aquele tecido de significados “típicos”, “rotineiros”, “normais” ou
“evidentes”, sem o qual nenhuma sociedade poderia existir. Logo, é de esperar-se
que um pesquisador ansioso poderá decepcionar-se diante da improbabilidade de
penetrar terra incógnita, mas de fato, seja qual for o rumo que sua exploração
tomará, qualquer empreendimento científico que procure o conhecimento de um
campo de ação corre perigo de encalhar, se uma confiança demasiada na
familiaridade com a topologia produz a ilusão de que baste esquadrinhar os recantos
do céu para encontrar as respostas certas. Pois, quem quer segurar o leme,
enquanto perscruta o homem e suas manifestações, precisa - antes de tudo - de
conceitos claros e um discernimento criterioso se quiser evitar que o primeiro
contravento derrote-o do seu destino.
Um olhar atento, então, descobre logo que o discurso cotidiano representa
um objeto de pesquisa ainda a construir; pois mesmo que os conhecimentos
partilhados do senso comum se impõem à consciência de maneira mais maciça,
urgente e intensa e dão uma ordem aos objetos do mundo e às coordenadas da
nossa vida em sociedade, não é de negar que o uso coloquial da expressão
“discurso cotidiano” não permite esclarecer o estado ontológico desse acervo social
ou determinar uma posição teórica que caracterize inequivocamente esse termochave para a construção da nossa realidade. Portanto, antes de desenvolver
qualquer análise empírica que se ocupe de uma formação histórica concreta do
discurso cotidiano, recomenda-se identificar quais são as dimensões e os limites
desse objeto obscuro.
Visto isso, é conveniente construir um modelo teórico que inclui as
conexões principais e os elementos constitutivos do discurso cotidiano, mas não se
baseia em evidências ou experiências cotidianas. Para fazer do “discurso cotidiano”
um conceito cientificamente útil, i.e., adequado a um método empírico da análise
do discurso, é preciso esclarecer, primeiramente, o que, na discussão acadêmica,
significa “discurso” e o que se entende como “cotidiano”. Nisso, descobre-se logo
2
que ambas as palavras reluzem todas as cores e são carregadas com o peso de
reflexões teóricas; são termos ambíguos que representam dois focos polêmicos de
várias escolas contemporâneas das ciências humanas.
2. Texto, discourse e discours
A palavra discurso tem sua origem etimológica no verbo latino discurrere
que significa “correr para diferentes lugares”. Um discurso, neste sentido original, é
uma fala ou uma conversa de certa extensão (não definida) cujo desenvolvimento
espontâneo não é refreado previamente por uma intenção rígida (cf. Frank, 1989:
409).
Com ou sem referência à sua história, hoje em dia o termo “discurso”
amiúde encontra-se em diferentes afirmações, diferentes tipos de composições e
diferentes vizinhanças semânticas. Mesmo que, muitas vezes, as diferentes
acepções ficam implícitas, é evidente que se trata de um homônimo: a saber, o
mesmo significante corresponde a vários significados. Essa afirmativa se comprova
facilmente quando se observa o uso da palavra no discurso publicitário ou midiático,
mas também quando se estuda seu emprego institucional ou científico. Decerto, o
conceito do discurso está na moda e encontra-se amplamente divulgado nas
ciências de linguagem, de literatura, das mídias, da história, nas ciências sociais e,
até, em alguns campos discursivos das ciências naturais. Não é de admirar, então,
que há vários modelos científicos de discurso.
O antropólogo Malinowski, um dos pais da pragmática, não vê na língua
um sistema abstrato de representações, mas uma maneira de agir. Para esse
pesquisador (1935: 8), o discurso representa um segmento de enunciados
conectados (“a connected stretch of utterances”) de um ou mais falantes com
relações entre as diferentes partes que constituem a unidade do discurso. A
conversa, nessa perspectiva, é um caso particular do discurso. O texto, conforme o
autor, “é separado do seu contexto de ação e situação1” (op. cit.: 8). Em outras
palavras, o texto escrito, gravado, citado ou lembrado é o que resta quando o
discurso é isolado do seu contexto imediato de produção. Retomando a
1
“[Text] is divorced from its context of action and situation”.
3
argumentação de Malinowski, o lingüista alemão Ehlich (1979: 426) também defende
a opinião de o texto ser, sobretudo, uma maneira de preservar um enunciado:
“Refiro-me a um texto quando o enunciado de um falante for preservado
além da situação direta do discurso. Isso exige sua fixação e gravação. [...]
É possível imediatamente separar o texto [...] da sua situação enunciativa2”.
No seu trabalho “discourse analysis”, o estruturalista americano Harris
(1951),
interpreta
o
discurso
como
uma
unidade
lingüística
mais
alta
hierarquicamente que a oração ou a frase. A descrição formal desse objeto e a
identificação dos seus constituintes dependem metodologicamente da análise das
estruturas inferiores. É possível, assim, indicar duas regras iniciais para a geração
de estruturas textuais3:
1. Texto  O (+O)
2. O  SN + SV.
Todavia, essa tentativa inútil de escrever gramáticas textuais através de regras
recursivas mostra, antes de tudo, que os estruturalistas costumam empregar a
palavra discurso no sentido que Malikowsi e Ehlich conferem ao termo texto. Essa
observação justifica, também, porque o título do trabalho de Harris foi traduzido para
o alemão como “Textanalyse”, ou seja, “análise do texto”.
Na perspectiva funcionalista, o estudo do discurso não se restringe à
descrição das formas lingüísticas, mas deve focalizar suas funções no uso da língua.
Os pesquisadores de orientação pragmática, por conseguinte, observam a
interdependência entre o discurso e o contexto da vida social (Brown & Yule, 1983:
1; Fasold, 1970: 65). Logo, eles rejeitam o conceito estruturalista que afasta o texto
do seu contexto:
“O texto [... ] não representa um conceito muito útil ou interessante para
compreender o comportamento lingüístico humano. É preciso ultrapassar a
abordagem limitada que vê os textos como coleções de produções
lingüísticas e que atribui estas produções a um indivíduo particular que
profere orações ou até mesmo a pares de indivíduos que trocam unidades
textuais estandardizadas, tais como perguntas e respostas, ordens e
reconhecimentos, promessas e aceitações, e outras simples trocas
conversacionais.4 (Mey, 1993: 184; apud Haberland, 1999: 913; a citação
não aparece na edição revistada de Pragmatics; obs. HPW)
“Ich spreche dann von einem Text, wenn die Äusserung eines Sprechers S über die unmittelbare Sprechsituation hinaus aufbewahrt wird. Dafür bedarf es ihrer Fixierung und Speicherung. [...] Für den Text ist [...] die
Möglichkeit seinert Ablösung aus der Sprechsituatiuon unmittelbat gegeben .”
3 O = oração, SN = sintagma nominal; SV = sintagma verbal.
4 “The answer is simply that the text [...] is not a particularly helpful or interesting concept in understanding human
speech behavior. What we need to do is to transcend the limited approach that sees texts as collections of
2
4
O conceito do discurso, ao contrário disso, é ligado intimamente à situação
enunciativa e ao contexto social (Mey, 2001: 190):
“Uma produção ‘ativa’ pressupõe naturalmente a existência de uma
sociedade particular com seus valores, normas, regras e leis implícitos e
explícitos e com todas as suas condições particulares de vida, sobretudo os
pormenores econômicos, sociais, políticos e culturais. O conjunto destas
circunstâncias é denominado freqüentemente com a expressão metafórica,
‘a fábrica da sociedade’, que é compreendida como um suporte de todas as
estruturas societais5 e como o contexto necessário para toda a atividade
humana. Na medida em que esta fábrica funciona e se torna visível (muitas
vezes através da língua, mas também em outras atividades humanas), ela é
apreendida pelo termo ‘discurso’.
O discurso é interpretado, nessa perspectiva, como uma condição
metapragmática que não se refere somente ao contexto imediatamente
percebido [... ], mas ele inclui também as condições ocultas que governam
tais situações do uso da língua [... ]
O discurso é diferente do texto porque abrange mais do que apenas uma
coleção de orações; o discurso é o que constitui o texto, e o que o liga ao
contexto”6.
A distinção de Mey sugere que é possível conceber uma semântica do
texto, mas não faz sentido falar de uma pragmática do texto. A lingüística do texto,
nesse sentido restrito, pode ocupar-se de fenômenos como a coerência ou a coesão
textuais, mas, os aspectos pragmáticos da enunciação são negligenciados à medida
que a indexicalidade inerente das expressões lingüísticas em geral e dos elementos
dêiticos em particular são desconsideradas (cf. Haberland, 1999: 914).
O
texto,
entendido
como
um
discurso
descontextualizado
ou
“congelado” (“frozen”), como diz Mey (id. ibid.), distingue´se nitidamente do discurso:
enquanto o primeiro pode ser transportado pelo tempo e pelo espaço e ser
consumido repetidamente ou ser analisado e reaproveitado, enquanto ele pode
fundar uma tradição e conservar vestígios de saberes do passado, representa o
language productions and ascribes these productions to single individual uttering sentences, or even to pairs of
individuals exchanging standardized text units such as questions and answers, orders and acknowledgements,
promises and acceptances, and other simple conversational repartees”.
5 “O autor distingue formação social e formação societal. Societal diz respeito a sociedade; não se opondo,
portanto, diretamente a individual (como acontece na dicotomia social / individual).” (Mey, 2000: 17)
6 “But an ‘active’ production naturally presupposes the existence of a particular society, with its implicit and explicit
values, norms, rules and laws, and with all its particular conditions of life: economic, social, political and cultural.
These conditions are often referred to collectively by a metaphorical expression: the ‘fabric of society’,
understood as the supporting element for all societal structures and the necessary context for all human activity.
Inasmuch as this fabric operates and becomes visible (mostly through language, but also in other human
activities), it is captured by the term ‘discourse’.
Discourse is here taken as a metapragmatic condition which not only refers to the immediately perceived context
[...], it also comprises the hidden conditions that govern such situations of language use. [...]
Discourse is different from text in that it embodies more than just a collection of sentences; discourse
is what makes the text, and what makes it context-bound.
5
segundo um acontecimento singular que se realiza apenas “aqui e agora”. Ora, um
enunciado não pode ser repetido porque as condições de enunciação nunca são
idênticas:
“As propriedades implícitas da enunciação repercutem no próprio
enunciado ao indexar as relações entre os usuários: isso quer dizer, elas
revelam parte das circunstâncias em que o enunciado é produzido e
recebido7” (Mey, 2001: 199).
Todavia é de se pressupor que o texto e o discurso interagem e mantêm
uma relação dialética. A saber, o acontecimento discursivo deixa, de um lado, seus
vestígios no texto; aliás, o próprio texto é o vestígio do discurso. Logo, sem discurso
não haverá texto. Do outro lado, é evidente que o discurso pode sobreviver apenas
como texto; pois os acontecimentos discursivos do passado seriam perdidos para
sempre se não tivessem deixado seus vestígios nos textos; o discurso, então,
pressupõe o texto, ou seja, sem texto não haverá discurso (cf. Haberland, 1999:
915).
O enfoque dos funcionalistas nas estratégias e intenções comunicativas é
mais acentuado ainda na proposta dos analistas críticos do discurso, que
interpretam os enunciados lingüísticos como fenômenos sociais e culturais
(Fairclough, 1989: 23) e que determinam o discurso como uma parte constitutiva da
sociedade. Nessa abordagem, o uso da linguagem é determinado pelas relações de
poder na sociedade. Portanto, “quem quer descobrir para quais finalidades a língua
serve tem que encontrar o usuário ou a usuária é determinar o que os leva a falar 8”
(Mey, 2001: 316). O olhar crítico, então, não investiga apenas à situação imediata da
enunciação, mas se interessa, sobretudo, pelos aspectos ideológicos das práticas
discursivas e, nisso, particularmente, pela importância da emancipação social diante
os discursos institucionais (Fairclough, 1989, 1992 e 1995; Van Dijk, 1985, 1997a e
1997b).
Para Habermas (1981), que acredita na primazia da intersubjetividade
soberana, o discurso é um evento comunicativo em que os sujeitos justificam suas
reivindicações de prestígio ou poder. Foucault (2002b) e a escola francesa da
análise do discurso, ao contrário disso, vêem na intersubjetividade, antes de todo, o
produto dos discursos históricos e específicos de uma cultura ou sociedade. Eles se
“These implicit properties of the utterance reflect on the utterance itself, by indexing its user relation: that is to
say, they tell us something about how the utterance is produced, respectively received.”
8 “To find out what language is used for, you have to find the user and determine, what makes him or her speak”.
7
6
interessam, portanto, pela questão de como o desdobramento do discurso é
influenciado pelas regulamentações sociais. Na sua perspectiva, o lugar do discurso
se encontra num espaço vago entre o sistema normalizado da língua (langue) e seu
uso meramente individual (parole):
“Os discursos [...] não são combinações singulares de palavras no sentido
da parole saussuriana, nem podem ser entendidos apenas no sentido das
regras que são obrigatórias para um determinado sistema lingüístico. Eles
não correspondem a primeira afirmação porque são eventos intersubjetivos
e não se encaixam na segunda porque gozam de uma liberdade não
regulamentada que não é desregrada, mas também não se enquadra no
conceito da regra gramatical” (Frank, 1989: 409).
2.1. A “escola francesa” da análise do discurso
As diferentes teorias, evidentemente, tentam impor seu próprio conjunto
de fenômenos, formular seus próprios problemas, montar seu próprio quebra-cabeça
e descobrir suas próprias regularidades. Entre as abordagens mais importantes, tem
um modelo que concebe o discurso como uma entidade supra-individual, um fato
social que representa sua própria realidade. Nesse quadro teórico, o discurso é uma
ordem sui generis que não pode ser reduzido naturalmente às intenções dos
indivíduos. Para Foucault e a escola francesa, o discurso é um meio de produção
que tem determinados efeitos e cujos produtos discursivos mostram uma certa
estruturação e se fundamentam em determinadas regras de formação. O discurso
estrutura os enunciados e deste modo dá forma e continuidade aos processos
sociais e às construções disciplinares. Cada formação discursiva representa um
enquadramento virtual da produção de enunciados cujo horizonte foge da percepção
pelo ator individual.
O discurso, diz Jäger (1993 e 1999), é o fluxo do conhecimento ou da
memória de conhecimentos pelo tempo. O saber representa o fundamento das
ações humanas e, deste modo, da construção da nossa realidade. O universo,
nessa visão, não se reflete na consciência humana, mas os homens lhe atribuem
sentido e, deste modo, criam sua realidade. Conforme Jäger (2001), os discursos
fornecem o conhecimento necessário e estabelecem as condições de aplicação na
formação desta realidade. Em outras palavras: “nosso mundo significativo existe
porque nós o fazemos significante ou porque ele recebeu dos nossos ancestrais ou
vizinhos significados e convenções que continuam ser importantes para nos” (op.
7
cit.: 77). Sendo assim, o discurso representa um conjunto de fenômenos que provêm
da produção social de sentido e que fundamentam a sociedade como tal.
O discurso, nessa perspectiva, não representa um objeto, nem um
espetáculo a observar, mas uma prática social que controla, seleciona, organiza e
canaliza sistematicamente a enunciação e que, por sua vez, é regulada por práticas
institucionais. As atividades que constituem essa prática são vivenciadas por sujeitos
falantes cujas vozes abarcam o mundo com palavras. Essas vozes “são os
instrumentos constitutivos sobre os quais se funda, em última instância, a
orquestração da sociedade” (Mey, 2000: 27). O termo prática social, então, inclui
todas as unidades de uma produção específica de conhecimentos, nomeadamente,
as instituições relevantes, os métodos de coleção e de processamento de saberes,
os autores e os falantes autorizados, as regras da formulação lingüística, nas
modalidades oral e escrita, e os meios para o armazenamento, a divulgação e a
recepção das informações.
Para Foucault (2002a e 2002b), os objetos não têm uma existência prédiscursiva. Logo, é preciso conceber a prática discursiva como um instrumento da
produção material que cria os objetos sócio-históricos como a loucura (Foucault,
2000a) ou o sexo (Foucault, 2001). O discurso não responde apenas às mudanças
históricas e sociais, mas precede-os e, deste modo, constitui a realidade social.
Ele proporciona a produção simbólica dos objetos e sua materialização em
complexos atos sociais. Nisso, os enunciados recebem ou mudam seu sentido
conforme o contexto sócio-histórico, político e discursivo, i.e., conforme o campo
prático discursivo no qual eles se inscrevem.
Cada indivíduo e cada comunidade interpretam o mundo de maneira
diferente e isso não acontece porque os homens nasceram assim, mas porque
diferentes modos de interpretação ou diferentes posições discursivas se
desenvolveram historicamente como respostas a diferentes acontecimentos e como
soluções para diferentes problemas (Jäger, 1996). Culturas, então, nada mais são
do que grupos de seres humanos que atribuem, à realidade, mais ou menos os
mesmos significados; e uma concreta realidade sócio-histórica é o resultado dos
discursos nos quais os atores individuais e coletivos são metidos.
2.1.1. O construtivismo radical
8
Nessa concepção, o discurso é intimamente ligado à maneira pela qual os
homens experimentam sua relação com as condições reais da vida. Essa relação é
inevitavelmente imaginária, ou seja, de caráter ideológico. Sendo assim, a linguagem
representa “o lugar privilegiado em que a ideologia se materializa” (Mussalim,200:
104). A ideologia, embora se apresente como legítima, destorce, dissimula,
escurece, mistifica e manipula o modo de ser do mundo. Chaui (1980: 108) expressa
uma definição ampla desse conceito:
“A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações
(idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e
prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como
devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem
sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer”.
Eagleton (1991: 15) especifica 16 aspectos definitivos do termo e, em seguida,
resume seu ponto de vista assim: “O que induz homens e mulheres a confundir-se,
de tempos em tempos, com deuses ou vermes é a ideologia” (op.cit.: 12).
Na teoria marxista (Marx, Karl & Engels, Friedrich, 1993), as ideologias
têm existência material, ou seja, “devem ser estudadas não como idéias, mas como
conjunto de práticas materiais que reproduzem as relações de produção” (Mussalim,
2000: 104). Para Althusser (1970), portanto, a ideologia naturaliza e universaliza
crenças e valores que contribuem para manter as relações de dominação. Nisso, ela
se materializa nos atos concretos dos indivíduos aos quais confere certa posição e
identidade. A ideologia envolve a participação em práticas sociais e rituais no interior
das instituições, os chamados “aparelhos ideológicos” que garantem, de um lado, a
integração e coesão dos grupos sociais e perpetuam, do outro lado, a base
econômica que as sustenta ao legitimar o poder político dominante.
Desde o Novum Organum (1994) de Francis Bacon, a ideologia concebeuse, tradicionalmente, como fonte dos erros humanos e de uma visão destorcida da
realidade. Na análise de discurso, no entanto, “a aparência social não é algo falso e
errado, mas é o modo como o processo social aparece para a consciência direta dos
homens” (Brandão, 2002: 21). Foucault e seus seguidores radicalizam o modelo
neomarxista ao afirmar que a percepção dos objetos não é apenas uma questão do
grau de distorção ou de disfarce da “verdade absoluta” sob a influência de interesses
sociais inconfessos. Para eles, a própria idéia de um acesso à realidade “que não
9
seja distorcida por nenhum dispositivo discursivo ou conjunção com o poder é
ideológica” (Zizek, 1996: 16).
A ideologia, nessa abordagem, não gera uma imagem desfigurada de um
mundo e de uma sociedade que existem fora do sujeito. Ao contrário, ela representa
um elemento criativo que mantém uma função constitutiva para a produção da
realidade individual e coletiva. A saber, a formação ideológica, como sistema de
atitudes e representações, atravessa as formações discursivas e afeiçoa os efeitos
de sentido que emergem das práticas sociais. Ora, se o mundo não é um dado, mas
um constructum, o resultado da elaboração discursiva do mundo, é de se concluir
que os próprios objetos não têm existência pré-discursiva, mas são produzidos nas
práticas sociais. “Os fatos nunca falam por si, mas são levados sempre a falar por
uma rede de mecanismos discursivos” (op.cit.:17).
O
mundo
em
que
vivemos
e
que
reconhecemos,
então,
é
necessariamente construído por nós mesmos. Não há uma relação direta do homem
com o mundo. Tudo com que lidamos são representações simbólicas. Portanto vale
dizer: “Esse est percipi!” Ser significa ser percebido! Berkeley (1988: 32), ao
explicar essa sentença, pressupõe explicitamente que a razão humana seja
responsável pela construção ativa do nosso mundo de vida:
“Todo o coro do céu e todo o mobiliário do mundo, em poucas palavras,
todos os objetos que compõem a moldura influente do mundo, não têm
nenhuma subsistência sem uma mente que percebe o conhece sua
natureza”.9
Kant (1991: 294), também, defende a opinião de que “a natureza” seja a
síntese da nossa experiência. Todo erro, diz ele, tem sua origem em nossa
tendência de confundir nossa maneira de determinar, derivar ou classificar os
conceitos com as condições “reais” dos objetos. Logo, a epistemologia, na visão
kantiana, torna-se uma investigação dos modos que o intelecto humano usa para
dar estrutura ao fluxo de experiências.
A questão epistemológica de como o mundo entra na mente humana ou,
inversamente, como e porque o ser humano interpreta o mundo e o subjuga às suas
necessidades e concepções, persegue os pensadores desde os primórdios, sem
que se chegue a uma solução definitiva. O sentido lexical da palavra grega aletheia,
“All the choir of heaven and furniture of earth, in a word all those bodies which compose the mighty frame of the
world, have not any subsistence without a mind, their being is to be perceived or known.”
9
10
por exemplo, já inclui duas explicações opostas do conhecimento humano. A saber,
a verdade é compreendida por ela tanto como uma identidade entre um pensamento
e a realidade quanto como uma concordância entre uma proposição e um
regulamento convencional. Convém lembrar, neste contexto, da teoria platônica das
idéias e do seu modelo competidor, da teoria aristotélica das categorias. Outrossim,
a controvérsia entre os filósofos antigos quanto ao caráter instrumental ou
representacional dos signos lingüísticos teve sua continuação na disputa medieval
sobre a existência a priori dos conceitos gerais (universalia) que desuniu os
nominalistas e os realistas.
Na visão dos realistas, há uma ligação direta entre as palavras e as
coisas: “vocês referuntur ad res significandas mediante conceptione intellectus”10
(Thomas, Summa theol, I, 13,1). Pressupõe-se, de um lado, que a existência dos
objetos não dependa da apreensão por um sujeito que se refira a eles e, do outro
lado, que o mundo seja mais ou menos assim como é percebido pelo homem. Os
conceitos têm, então, uma motivação icônica, ou seja, exprimem um mapeamento
mais ou menos perfeito da ordem natural do mundo. Nessa perspectiva, uma
afirmação é verdadeira quando exprime um fato que existe “realmente”, ou nas
palavras de Tomas de Aquino: “Veritas est adequatio intellectus et rei”11.
Os nominalistas, ao contrário, partem da idéia de que apenas os
fenômenos individuais tenham uma base “real”: Ockham (1999) afirma nesse
sentido: “Nulla natura realis est communis”. Os conceitos universais são meras
criações mentais (nomina), signos às quais corresponde nenhuma entidade real fora
do pensamento humano. Nessa visão, são as práticas simbólicas que estruturam o
mundo e, em última instância, dão um sentido aos seus objetos.
No século XX, pensadores como Wittgenstein (1971/I: 451 seg.) retomam
as idéias dos nominalistas quando observam que cada processo comunicativo se
encaixa, a priori, no horizonte das pressuposições compartilhadas pelos sujeitos, ou
seja, no senso comum. Husserl (1936) e Schütz (1932 e 1953) chamam esse
horizonte intersubjetivo “o mundo da vida” (Lebenswelt). A língua e a cultura como
elementos essenciais desse mundo da vida se apresentam como conditio sine qua
non: elas têm que ser pressupostas desde sempre, pois representam o sistema
referencial da própria compreensão. O acordo geral sobre a natureza do mundo da
10
11
“As palavras significam as coisas mediante os conceitos”.
“A verdade é a correspondência exata entre o intelecto e a coisa”.
11
vida antecede qualquer possibilidade de divergências particulares. As situações
mudam, mas os limites do mundo da vida são intransponíveis e formam um contexto
inesgotável (cf. Habermas, 1981/ II: 198 – 202).
Sendo assim, o mundo da vida transmite aos sujeitos a sensação de uma
certeza inquestionável. Seu conhecimento, portanto, não pode ser problematizado,
mas, quando muito, pode desmoronar. Essa idéia, como Habermas (1981/II: 205)
observa, contém um paradoxo: o conhecimento do mundo da vida proporciona a
impressão da certeza absoluta apenas enquanto os sujeitos não tomam
conhecimento dele. Bourdieu (1977b) refere-se a essa noção com o conceito da
doxa, que inevitavelmente se desintegra quando se torna objeto de controvérsia.
Dando continuação à tradição nominalista, a escola francesa da análise do
discurso, também, rompe com todos os modelos representativos e rejeita qualquer
concepção especular do saber que considere o discurso como uma re-presentação
da realidade. Foucault e seus seguidores partem da idéia de que os homens, ao
nascer, não entrem num universo de “objetos reais”, mas num universo de discursos
“que separem e, deste modo, criem o ego e o mundo, o sonho e a realidade, a ilusão
e a verdade” (Jäger, 1993: 146). Os conceitos, então, são entidades “instáveis,
variáveis e flexíveis que se desenvolvem no seio das interações individuais e sociais
com o mundo e com os outros e por meio de mediações semióticas complexas”
(Mondada & Dubois, 2003: 22). Nesse modelo teórico, o que constrói nosso mundo
regular e relativamente estável são as decisões sobre o que vale como uma unidade
real e sobre o que é aceito como uma relação entre os diferentes objetos “reais”:
“As categorias e os objetos de discurso pelos quais os sujeitos
compreendem o mundo não são nem preexistentes, nem dados, mas se
elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos
contextos” (op cit.: 17).
À primeira vista, essa abordagem parece “idealista”, mas, de fato, Foucault
nunca afirmou que o mundo não existiu antes de o discurso tê-lo criado. Aliás, para
sua abordagem é essencial que as práticas discursivas e não discursivas são
intimamente ligadas em cada contexto sócio-histórico. Orlandi (1996: 27), também,
destaca a construção discursiva do referente:
“O social para a AD [análise de discurso] não é correlato, ele é constitutivo.
Isto é, não há uma correlação entre a estrutura da língua e a da sociedade,
pois o que há é uma construção conjunta do social e do lingüístico. Melhor
12
ainda, define-se o discurso como um objeto social cuja especificidade está
em que sua materialidade é lingüística” (Orlandi, 1996: 27).
Visto isso, o espaço discursivo não representa uma dimensão do social, mas é
idêntico com o social. Não há uma vida social fora do discurso. Tanto o saber da
razão humana quanto o mundo da experiência racional são produtos da construção
cognitiva.
Uma vez estabelecida o organismo cognitivo vivencia esta estrutura como
“a realidade”. Como ela é criada quase involuntariamente, essa realidade parece
como um mundo independente, um universo que tem existência autônoma e que
obedece a leis próprias. Todavia, as conexões entre os conceitos não dependem da
sua existência “real”, mas surgem apenas no ato de raciocinar. De fato, a
criatividade do pensamento se delimita a associar e estruturar as impressões e as
idéias que os sentidos e a experiência fornecem e não alcança nada do que se
encontra além dessa faculdade. O conhecimento do homem representa,
necessariamente, uma perspectiva (histórica) do mundo, produzida pelas práticas e
pelos hábitos sociais.
Hume (1957: 47) comenta a importância que a ilusão de conhecer
causas e efeitos representa para nossa vida cotidiana:
“Toda a experiência se tornaria inútil e não poderia conduzir a nenhuma
conseqüência ou conclusão se houvesse uma suspeita mínima de que o
decorrer da natureza pudesse mudar e de que o passado não
representasse uma regra para o futuro”.
E ele deixa claro que as atividades humanas para compreender esse “decorrer da
natureza” não produzem uma imagem verdadeira do mundo, mas uma estrutura
implícita que determina, a priori, a experiência humana e os princípios da
interpretação dos fenômenos (op. cit.: passim).
Giambattista Vico (1988), também, assume essa perspectiva quando
afirma verum ipsum factum, a verdade e o mesmo como o feito12. Ora, a
interpretação sempre se dá de algum lugar da história e da sociedade. Fazemos
raciocínios e servimos-nos de determinadas operações para abrirmos os caminhos
que conduzem à realização dos nossos objetivos. Nisso, nunca nos encontramos
fora das representações simbólicas da nossa cultura e sociedade. “As categorias
conforme as quais classificamos a natureza não se encontram na natureza, elas
12
Etimologicamente, a palavra fato tem sua origem no verbo facere
13
surgem apenas através da nossa interação com a natureza 13” (Bickerton, 1990:53).
Portanto, não é a realidade que se reflete na consciência, mas a consciência que se
reflete na realidade. A ideologia, então, surge num processo de representação em
que a subjetividade imaginária e a relação simbólica do homem com a realidade são
entretecidas inseparavelmente:
“Seja que for, o que escolhemos como elementos básicos, tijolos ou
elementos euclídicos, eles determinam os nossos limites. Contudo,
experimentamos esses limites, pó assim dizer, sempre pelo ponto de vista
‘de dentro’, pela perspectiva dos tijolos ou pela perspectiva dos elementos
euclídicos. Os limites do mundo nos quais nossos empreendimentos
fracassam estão além do nosso horizonte. O que vivemos e
experimentamos, reconhecemos e sabemos se compõe, necessariamente,
dos nossos próprios elementos e pode ser explicado, apenas, pela nossa
maneira de construir. (Glasersfeld, 1985: 35).
“O mundo é discursivo”, diz Jäger (2001), e, conforme o mesmo autor,
não há como fugir disso:
“Um objeto a qual eu não posso atribuir um significado não é um objeto para
mim; ora, ele é completamente difuso para mim, invisível ou até inexistente;
eu nem consigo vê-lo porque não me dou conta dele. Eu não vejo o pássaro
que o guarda-florestal está vendo. Talvez eu percebo uma mancha
vermelha. E, de fato, isso é o significado dessa mancha vermelha, que sou
capaz de atribui-la o significado de uma mancha vermelha. A questão se ela
representa uma flor, um pássaro ou um tufo de cabelo... não é percebível
para mim, ela não é dada, ela é fora do meu alcance” (op. cit.: 77).
Sendo assim, é pelo discurso que melhor se compreende a relação entre a
linguagem, o pensamento e o mundo. Como, funciona, então, a negociação do
sentido no discurso? Para lingüistas isso deve ser uma questão fundamental, mas
surpreendentemente, não foi bem assim, pois como se sabe, as principais tentativas
de responder a pergunta provêm de filósofos (Austin 1962, Grice 1975, Searle 1969)
e sociólogos (Sacks, Schlegloff and Jefferson 1974, Schlegloff 1968 e Schlegloff &
Sacks 1973) que se ocuparam com o problema de como os participantes coordenam
o conteúdo e o timing durante a conversação. Um olhar breve para a origem da
lingüística moderna explica esse déficit histórico.
2.1.2. O estruturalismo e o pós-estruturalismo
“The categories, into which we divide nature are not in nature, they emerge solely through the interaction
between nature and ourselves.”
13
14
A concentração saussuriana na língua enquanto sistema fechado de
signos permitiu a análise das relações entre significante e significado sem ter motivo
de estabelecer qualquer ligação entre o significado e o referente. “Influências
externas, geradores de irregularidades, não afetam o sistema por não serem
consideradas como parte da estrutura... A língua não é apreendida na sua relação
com o mundo, mas na estrutura interna de um sistema fechado sobre si mesmo”
(Mussalim, 2000: 112).
Uma das formulas mágicas que os estruturalistas clássicos tiraram do
Cours de Saussure diz que a língua não é uma substância, mas uma forma. Nesse
modelo, a língua não alia os conceito à realidade, mas irmana, arbitrariamente, um
significado a um significante. Os princípios dessa união são universais e,
teoricamente, podem reivindicar validade para todas as disciplinas científicas. Assim
sendo, o interesse dos estruturalistas destina-se às possibilidades combinatórias
dessas duas dimensões do signo. Lévi-Strauss (1974), por exemplo, tenta descobrir
as redes estruturais nas diferentes organizações do parentesco. O significado de um
signo social, diz o autor, depende unicamente das relações que esse signo mantém
com os outros elementos estruturais. Desse modo, o processo de significação se
reduz a um mero jogo de diferenças.
O lado material ou somático do signo, o referente é excluído como
irrelevante. A estrutura representa um espaço topológico com um centro fixo e
posições definidas cuja combinação fornece critérios para uma ordem estrutural. O
sentido relacional dessa ordem antecede às ocupações possíveis da rede estrutural
com variáveis reais ou fictícios. Assim sendo, é possível analisar todos os níveis da
estrutura lingüística como o mesmo aparelho analítico apesar das diferenças entre a
morfologia, a sintaxe e a semântica. No entanto, o sentido relacional se baseia numa
concepção do signo exclusivamente “opositiva, relativa, negativa”:
“[Os significados] são puramente diferenciais, definidos não positivamente
por seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros
termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não
são” (Saussure, 1999: 136).
Com essa separação da língua é da fala, separa-se o que é geral e social
do que é incidental e individual. Exclui-se, também, o sujeito falante e todas as
suas atividades associadas ao exercício da linguagem. Como a descrição dos
diferentes níveis da língua é talhada sem referência alguma ao uso efetivo que dela
15
é feito pelos locutores, exclui-se completamente a linguagem como atividade. No seu
estudo seminal sobre a noção da dêixis, Lakhud (1979: 96) resume a teoria
saussuriana assim:
“Saussure supõe que todos os fenômenos emergindo no momento da
enunciação são uma conseqüência segunda da mera utilização da língua,
que a tarefa do lingüista pode ser reduzida à descrição desta última em
termos de puros valores, sistema semiológico fechado de entidades
binárias, cuja arquitetura corresponde a uma combinatória entre unidades
do mesmo nível. A remissão ao sujeito e à situação, a dimensão referencial,
em suma todos os fatores pelos quais a linguagem se faz mediadora ‘entre
o homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as
coisas, transmitindo a informação, comunicando a experiência, impondo a
adesão, suscitando a resposta, implorando, coagindo’14, todos esses
fatores, portanto, não fariam parte desse ‘tesouro’ depositado nos ‘cérebros’
dos indivíduos de uma coletividade. Eles surgem ao nível do realizado como
meras incidências da própria realização, incidências que os procedimentos
do lingüista devem neutralizar a fim de reconstruir a estrutura das relações
passivas entre significantes e significados, único componente coletivo da
linguagem para Saussure”
Saussure e as diferentes correntes do neo ou pós-estruturalismo têm em
comum que eles excluem o referente da tríade semiótica ao tratar-lo como um
elemento que não influência diretamente à produção de signos. Embora o referente
seja submetido ao processo semiótico, observa-se que ele tem apenas a função de
um vácuo a ser preenchido lingüisticamente. Ele representa, então, um conceito
construído a posterior. Seguindo essa lógica, o sujeito pós-estruturalista, também, é
um produto puramente semiótico um ser preso na língua e pela língua que não tem
origem nem unidade.
Observa-se, também, que a nova geração não se interessa tanto pelas
relações entre os elementos do mesmo nível estrutural quanto pelas relações entre
os elementos estruturais de níveis diferentes. Além do mais, descobre-se o discurso
como uma terceira ordem que é essencialmente diferente da langue e da parole. A
saber, Lévi-Strauss afirma, num estudo antropológico (1974: 232), que o mito,
representa um acontecimento que como forma lingüística, pertence à langue e,
como narração, se refere à parole. Conforme o autor, o mito não representa uma
sucessão fechada de signos individuais, mas uma seqüência de proposições
oracionais. A linearidade da sucessão de orações confere a cada elemento sígnico
um índice de tempo. Logo, é impossível tira-lo incólume do seu contexto específico.
Conseqüentemente, é preciso estabelecer um nível intermediário entre o sistema
14
Beneviste, La forme et lê sens dans lê langage. In: Lê Langage. 1967.
16
abstrato da langue e a realização individual da parole. Para Lévi-Strauss, é claro que
“os mitos dizem respeito ao discurso” (1973: 230), “Il[s] relève[nt] du discours” e ele
conclui que o mito constitui um tipo particular do discurso (op. cit.: 232 seg.):
1. Como toda entidade lingüística, o mito compõe-se de unidades
constitutivas.
2. Essas unidades constitutivas implicam a presença daquelas unidades
que interferem normalmente na estrutura da língua; a saber, os
fonemas, os morfemas e os semantemas. Mas elas [as unidades
constitutivas] representam para essas últimas [os semantemas], o que
semantemas representam par os morfemas e o que os morfemas
representam para os fonemas. Cada forma distingue-se daquela que a
procede por um grau maior de complexidade. Por esta razão,
chamaremos os elementos que se referem ao próprio mito (e que são
os mais complexos de todos) de grandes unidades constitutivas, ou
seja, mitemes.15
Neste trecho, surge primeiramente a idéia do que se chama, desde então, a
“linguistique du discours”.
Barthes (1966: 3) é que descreve lucidamente as
características desse novo ramo do saber:
Sabe-se que a lingüística termina na frase: esta é a última unidade da qual
ela acredita ter o direito de ocupar-se; [...] Contudo, é evidente que o próprio
discurso (como conjunto de frases) é organizado e, devido a esta
organização, ele aparece como uma mensagem de outra língua que é
superior a dos lingüistas. O discurso tem suas unidades, suas regras, sua
’gramática’: o discurso ao transcender a oração e, ainda assim, composto por
orações apenas, deve ser, evidentemente, o objeto de uma segunda
lingüística. [...] se for preciso levantar uma hipótese de trabalho numa análise
cuja tarefa é imensa e cujo material é infinito, a mais razoavel seria postular
uma relação de homologia entre a oração e o discurso, na medida em que a
mesma organização formal rege provavelmente todos os sistemas
semióticos, seja qual forem as suas substâncias e as suas dimensões: o
discurso seria uma oração grande (cujas unidades não seriam
necessariamente as orações) igualmente como a oração através de certas
especificações, representaria um discurso pequeno. 16
1o comme tout être linguistique, le mythe est formé d'unités constitutives;
2o ces unités constitutives impliquent la présence de celles [unités] qui interviennent normalement dans la
structure de la langue, à savoir les phonèmes, les morphèmes et les semantèmes. Mais elles sont, par rapport à
ces derniers comme ils sont eux-mêmes par rapport aux morphèmes, et ceux-ci par rapport aux phonèmes.
Chaque forme diffère de celle qui procède par un plus haut degré de complexité. Pour cette raison, nous
appellerons les éléments qui relèvent en propre du mythe (et qui sont les plus complexes de tous): grosses unités
constitutives [soit mythèmes] » (Leví-Strauss, 1974 : 232 seg.).
16 On le sait, la linguistique s`arrête à la phrase: c`est la dernière unité dont elle estime avoir le droit de s`occuper;
[...] Et pourtant il est évident que le discours lui-même (comme ensemble des phrases) est organisé et que par
cette organisation il apparaît comme le message d`une autre langue, supérieure à la langue des linguistes. Le
discours a ses unités, ces règles, sa ‘grammaire’: au-delà de la phrase et quoique composé uniquement des
phrases, le discours doit être naturellement l`objet d`une seconde linguistique. [...] s`il faut donner une hypothèse
de travail à une analyse dont la tâche est immense et les matériaux infinis, le plus raisonnable est de postuleur un
rapport homologique entre la phrase et le discours, dans la mesure où une même organisation formelle règle
vraisemblablement tous les systèmes sémiotiques, quelles qu`en soient les substances et les dimensions: le
discours serait une grande phrase (dont les unités ne sauraient être nécessairement des phrases), tout comme la
phrase, moyennant certaines spécifications, est un petit discours.
15
17
Ao contrário do que seu nome sugere, o pós-estruturalismo não se propôs
a superar o conceito da estrutura, mas radicalizou-o ao pensar a estrutura como
sendo incompleta e instável. Dentro dessa estrutura aberta e mutável vale o
princípio da entropia. Não há mais um centro fixo e uma periferia ao redor dele. A
estrutura não se desenvolve mais coerentemente a partir do seu núcleo, mas
continua fiar seu tecido a partir dos seus elementos (autopoeisis). Sendo assim, é
impossível predizer onde e como as mudanças desta estrutura descentralizada
ocorrerão e qual direção elas tomarão.
A epistemiologia kantiana se ocupa da descoberta das categorias
universais (por ex.: a substância ou a causalidade) que estruturam, a priori, qualquer
conhecimento humano. Os pós-estruturalistas mantêm essa idéia da imposição de
uma ordem implícita ao pensamento humano, mas eles rejeitam qualquer
explicação que interprete as condições do conhecimento como transcendentes. No
seu ponto de vista, o pensamento humano se desdobra no contexto de uma ordem
de símbolos que estrutura o mundo e proporciona a experiência dos fenômenos aos
membros de uma comunidade lingüística ou cultural. Para Foucault (2002b: 145), os
esquemas mentais são relativos e se baseiam sempre num “A Priori histórico”. Em
outras palavras, no seu ponto de vista, as categorias que predeterminam a
experiência dos fenômenos fazem parte do mesmo mundo histórico-cultural no qual
elas encontram os objetos em sua forma específica.
“Não há providência pré-discursiva que disponha [o mundo] a nosso favor.
Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas,
como uma prática que lhes impomos em todo caso; e é nesta prática que os
acontecimentos do discurso encontram o princípio da sua regularidade.
(Foucault, 2000: 53)
Nos seus estudos “As palavras e as coisas” (2002a) e “A arqueologia do
saber” (2002b), o autor tenta indicar as normas implícitas pelas quais as disciplinas
científicas, numa dada época, podem gerar conhecimentos. O autor demonstra a
existência desses princípios através de numerosos exemplos e dá ao conjunto
dessas regras a denominação episteme. O discurso, conforme o autor, constitui-se
dentro de um desses códigos macro-estruturais que organizam invisivelmente todo o
espaço social e discursivo de uma época e/ou cultura. Assim sendo, a episteme é o
princípio fundamental pelo qual uma sociedade configura a ordem do discurso:
18
“A episteme não é uma forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade
que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade
soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das
relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as
ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades
discursivas” (Foucault, 2002b: 217).
Ao ocupar-se da arqueologia do saber, Foucault (2002b) vê, na episteme, um
“inconsciente positivo do conhecimento” (cf. Frank, 1989) que se esquiva da
consciência do pesquisador, mas, apesar disso, faz parte do discurso científico.
A episteme, ainda como conjunto de relações entre ciências, figuras
epistemológicas, positividades e práticas discursivas, permite compreender
o jogo das coações e das limitações que, em um momento determinado, se
impõem ao discurso” (id. ibid.).
A relação entre uma episteme e as formações discursivas de uma época ou cultura é
dialética, pois, de um lado, as estruturas epistémicas representam uma condição
prévia da ordem do discurso; do outro lado, são os discursos e as formações
discursivas que constituem as macro-estruturas de toda episteme.
Seguindo essa linha de argumentação, Jäger (1996) afirma: “Quando o
discurso se muda, o objeto não muda apenas seu significado, mas o próprio objeto
quase se transforma num outro objeto; ele perde sua identidade”. Logo, quando os
homens abandonam um discurso, é de se esperar que a área correspondente da
realidade torna-se insignificante literalmente ou que lhe são atribuídos novos
significados. Isso significa que os sentidos são historicamente construídos. Não
existe, por conseguinte, um discurso homogêneo17, abrangente e fechado, nem um
significado estável e imutável. Laclau (1983 apud Kaltenecker, s.d.), ao esclarecer
essa conexão entre materialidade, discurso e significado, afirma:
“Quando desfiro chutes num objeto esférico na rua ou quando jogo com
uma bola num jogo de futebol, o fato físico é sempre o mesmo, mas seu
sentido é completamente diferente, pois o objeto se torna apenas um
futebol ao estabelecer um sistema de relações com outros objetos; e essas
relações não são predeterminadas pela mera materialidade do objeto, mas
socialmente construídas”.
De certo, a dimensão ideológica da representação simbólica e do discurso está
ligada sempre ao campo das práticas sociais nas quais se manifestam perspectivas
Quanto à heterogeneidade discursiva remetemos o leitor a Authier-Revuz, 1990; Brait, 1997; Bakhtin,
1928/1997; Barros & Fiorin, 1994; Brandão, 2002: 69 – 80; Ducrot, 1984; Manguueneau, 1997; Orlandi, 2001b:
109 – 127.
17
19
e pontos de vista muito diferentes. Afinal, prosseguindo a argumentação de Laclau
(id. ibid.), é bem possível que uma lata vazia seja interpretada como um futebol e o
jogo no beco de um subúrbio como final de um campeonato.
2.1.3. A dispersão da razão
Para Foucault (2002b: 98), o enunciado representa um acontecimento
sócio-interativo que não pode ser confundido com os termos “proposição”, “oração”
ou “ato de fala”. Conseqüentemente, a relação entre o significante e o significado,
entre a proposição e o referente e entre a ilocução e o sentido não correspondem à
relação entre um enunciado e o que ele exprime. A função do enunciado distinguese por características próprias, pois o enunciado não é em si mesmo uma unidade,
mas ”uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir
da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles ‘fazem
sentido’ ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são
signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou
escrita)” (op. cit.: 99). O enunciado, então, não funciona como um elemento fora do
discurso, mas apenas como uma componente de uma formação discursiva. Ele é,
então, “uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e
que faz com que aparecem, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (id.
ibid.).
No
âmbito
do
método
arqueológico
de
Foucault,
as
seguintes
características do enunciado são regularmente mencionadas:
i) O enunciado não se refere ao referente, mas é relacionado com ele por
uma atividade sócio-interativa (op. cit.: 129 – 133).
ii) O sujeito que produz uma cadeia de signos e se torna, assim, o seu
autor não é idêntico com o sujeito do enunciado (op. cit: 134), pois
este não é ligado a pessoa de um autor nem às intenções dele.
iii) Todo enunciado encontra-se num campo associado (op. cit.: 143),
i.e., num certo contexto com enunciados co-existentes aos quais ele se
reporta. Estes, por sua vez, contribuem no mesmo assunto e
especificam ou modificam certos aspectos dele.
iv) O enunciado é associado a um portador, um lugar e um momento
histórico e, portanto, tem existência material (op. cit.: 147). Logo, é de
20
se esperar que uma alteração das condições materiais muda a
identidade do enunciado.
Baseando-se nesse conceito, Foucault define o discurso como um
conjunto de enunciados que pertencem ao mesmo sistema de formação. As regras
que mantêm os enunciados juntos e que determinam a sua “dispersão real”
constituem uma “formação discursiva” (op. cit.: 170). Conforme Mussalim (2000:
125), a formação discursiva representa “o lugar onde se articulam o discurso e a
ideologia”. A formação discursiva, então, representa um mecanismo de controle que
determina “o que pode/deve ser dito a partir de um determinado lugar social” (id.
ibid.). Em outras palavras: ela representa aquela dimensão da sociedade na qual
uma dispersão de enunciados pode ser descrita como um campo delimitado e mais
ou menos estável que inclui as verdades possíveis dentro de um complexo de
instituições e práticas sociais.
Nessa perspectiva, nenhum texto é inocente, pois não deve seu sentido às
suas características lingüísticas objetivas e inerentes, mas ao fato de que foi
produzido no entrecruzamento das diferentes formações discursivas que se
distinguem por suas ideologias particulares e seus modos específicos de controlar o
poder. Destarte, as regras de formação discursiva se caracterizam como:
“um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma área
social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício
da função enunciativa (Foucault, 2002b: 136) ”
O que importa para Foucault (1995: 136), numa prática discursiva, é a
existência objetiva e material de certas regras às quais o sujeito obedece quando
quer participar no discurso. Assim sendo, uma formação discursiva não pode mais
ser interpretada como um espaço fechado “com elementos ligados entre si por um
princípio de unidade” (Mussalim, 2000: 119), pois ela é sempre invadida por
elementos exteriores e/ou pré-construídos que são incorporados “num esforço
constante de fechamento de suas fronteiras em busca da preservação de sua
identidade” (Brandão, 1998: 39). Foucault, conseqüentemente, concebe a formação
discursiva como uma dispersão:
“No caso em que se puder descrever, entre um certo número de
enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os
objetos, os tipos de enunciação, os conceitos as escolhas temáticas, se
21
puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e
funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de
uma forma discursiva” (Foucault, 2002b: 43).
E as regras de uma formação discursiva são definidas como
“as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição
(objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas), [ou
seja], condições de existência (mas também de coexistência, de
manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada
repartição discursiva” (op. cit.: 43 seg.).
Assim sendo, as condições existenciais do discurso resultam de quatro
tipos de regularidades:
i) da formação discursiva dos objetos, i.e., do surgimento, da
delimitação, da transformação e da distribuição dos objetos num
espaço discursivo (Foucault, 2002b: 46 – 56);
ii) das modalidades enunciativas cujas regras descrevem os lugares
institucionais e determinam a legitimidade e a posição discursiva do
enunciador (op.cit.: 57 – 62);
iii) da arquitetura dos conceitos que define a sucessão, a co-existência
e a re-formulação dos termos-chave de um discurso (op. cit.: 63 – 70);
iv) das estratégias discursivas que determinam a distribuição e a
concatenação históricas dos temas e das teorias e que sempre
refletem, também, a integração do discurso em práticas nãodiscursivas e instituições (op. cit.: 71 – 77).
A figura 1 na página seguinte mostra como o sistema dinâmico das regras de
formação determina a prática discursiva, se materializa na produção enunciativa e
estrutura a percepção da realidade. Ora, é preciso refletir um pouco melhor sobre os
fatores que geram as condições existenciais do discurso.
Quanto ao sistema de emergência dos objetos, Foucault afirma que os objetos
discursivos não têm uma existência pré-discursiva, pois o sujeito não transforma um
fenômeno dado em objeto da sua subjetividade, mas constrói o objeto ao constituirse como sujeito. As características dos objetos discursivos, portanto, são
determinadas, em última instância, pelas regras de formação que determinam o que
pode ser dito ou não nas diferentes atividades discursivas.
“Essas regras estabelecem as condições – históricas, de parentesco com
outros objetos – e as relações – de semelhança, de vizinhança, de
afastamento, de diferença e de transformação – que definem o
aparecimento dos objetos” (Mascia, 2003: 32).
22
Figura 1: O sistema dinâmico de regras ou formações discursivas que fundamenta a
produção enunciativa, se materializar nos enunciados e estrutura a
percepção da realidade (prática discursiva) (fonte: Diaz-Bone, 1999: 125)
O discurso enquanto
sistema de regras que
funciona como um
inconsciente positivo para a
fala e o pensamento
Nível dos
enunciados
Relações entre
os objetos
Arquitetura
de conceitos
Nível das regras de
formação
Formação
dos objetos
Formação
dos conceitos
Construção das
posições subjetivas
Opções
estratégicas
Sujeitos
autorizados
Interesses
teóricos,
intenções
Relações
discursivas
Relações secundárias
ou reflexivas
“Realidade” construída
lingüisticamente e
percebida coletivamente
Ambiente do discurso:
Relações primárias
(“base”) e outros
discursos
Relações
primárias
Outro
discurso
Outro
discurso
23
Com respeito aos modos diversos da enunciação, é evidente que seu
aparecimento e sua distribuição variam conforme o momento histórico e o lugar
social. Todavia, Foucault (2002b) mostra claramente que o regime das enunciações,
de maneira alguma, está relacionado à unidade de um sujeito; ao contrário, a análise
das modalidades enunciativas revela a subjugação do sujeito às forças institucionais
e sua dispersão no campo discursivo (Foucault: 2002b: 61). Os discursos produzem
e categorizam seus sujeitos e objetos através dos enunciados e criam,
simultaneamente, a ilusão da autoria e da continuidade histórica (cf. Robin, 1977: 25
e 41).
A interpelação ideológica que permite a constituição e a identificação do
sujeito tem o efeito de que o sujeito se considere “a origem do que diz” e “a fonte
exclusiva do sentido do seu discurso” (Brandão, 2002: 65).
“O sujeito se ilude duplamente: a) por ‘esquecer-se’ de que ele mesmo é
assujeitado pela formação discursiva em que está inserido ao enunciar
(esquecimento n. 1); b) por crer que tem plena consciência do que diz e que
por isso pode controlar os sentidos de seu discurso (esquecimento n. 2)”
(Mussalim, 2000: 135).
As forças da ideologia produzem o sujeito cartesiano, consciente e capaz
de agir no mundo social como agente formador, mas esse sujeito vive, de fato, na
ilusão (necessária) de que “o discurso reflete o conhecimento objetivo que tem da
realidade” (Brandão, 2002: 66). A análise de discurso, ao descrever as condições da
produção discursiva, tem como objetivo desnaturalizar esse efeito ideológico.
Para Foucault e dos seus seguidores, o sujeito é um efeito da
linguagem. Ele é “atravessado pelo inconsciente, múltiplo, esfacelado, cindido,
clivado, marcado pela incompletude” (Mascia, 2003: 12). Assim sendo, ele não é
soberano, “não lhe é dado controlar o outro nem os efeitos de sentido de seu dizer”
(id. ibid.); pois, como diz Mussalim (2000: 131), “o que é e o que não é possível de
ser enunciado por um sujeito já está demarcado pela própria formação discursiva na
qual está inserido”. Conseqüentemente, uma teoria de sujeito condizente com uma
concepção do texto como “produto de um trabalho ideológico não-consciente” não
pode interpretar o sujeito do discurso “como aquele que decide sobre os sentidos e
as possibilidades enunciativas do próprio discurso, mas como aquele que ocupa um
lugar social e a partir dele enuncia, sempre inserido no processo histórico que lhe
permite determinadas inserções e não outras” (Mussalim, 2000: 110).
24
“Em outras palavras, o sujeito não é livre para dizer o que quer, mas é
levado, sem que tenha consciência disso [...], a ocupar seu lugar em
determinada formação social e enunciar o que lhe é possível a partir do
lugar que ocupa” (id. ibid.)
O sujeito, então, constitui-se apenas através dos objetos que cria e, desse
modo, passa a representar uma unidade funcional de um campo anônimo do
discurso. A configuração desse campo determina as posições que os sujeitos podem
ocupar. O status de uma pessoa, a legitimidade do seu enunciado e o lugar
institucionalizado de onde ela fala determinam o valor, o efeito e a existência de um
enunciado. Conseqüentemente, é preciso perguntar:
“Quem fala? Quem, no conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas
razões para ter esta espécie de linguagem? Quem é seu titular? Quem
recebe dela sua singularidade, seus encantos, e de quem, em troca,
recebe, se não a sua garantia, pelo menos a presunção de que é
verdadeira? Qual é o status dos indivíduos que têm – e apenas eles – o
direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou
espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso? (Foucault,
2002b: 57)
Quanto à formação dos conceitos, vale dizer, primeiramente, que eles
não são “o resultado, depositado na história e sedimentado na espessura dos
hábitos coletivos, de operações efetuadas pelos indivíduos” (Foucault, 2002b: 70).
As regras do surgimento, da dispersão e da combinação dos conceitos não têm seu
lugar na consciência dos falantes, mas no próprio discurso; “elas se impõem, por
conseguinte, segundo um tipo de anonimato uniforme, a todos os indivíduos que
tentam falar nesse campo discursivo” (op.cit.: 70). Todo discurso se distingue, então,
pela relação entre seus enunciados e os “esquemas (de seriação, de agrupamentos
simultâneos, de modificação linear ou recíproca)” que determinam sua arquitetura
conceitual (op. cit.: 66 seg.).
“Esses esquemas permitem descrever – não as leis de construção interna
dos conceitos, não a sua gênese progressiva e individual no espírito de um
homem – mas sua dispersão anônima através de textos, livros e obras;
dispersão que caracteriza um tipo de discurso e que define, entre os
conceitos, formas de dedução, de derivação, de coerência, e também de
incompatibilidade, de entrecruzamento, de substituição, de exclusão, de
alteração recíproca, de deslocamento, etc. Tal análise refere-se, pois, em
um nível de certa forma pré-conceitual, ao campo em que os conceitos
podem co-existir e às regras às quais esse campo está submetido”.
25
A dispersão anônima dos conceitos torna a unidade da obra problemática,
pois, a noção do texto não se baseia mais na figura de um autor, mas na idéia da
colaboração dos textos anteriores. A noção da intertextualidade explica, no nível
micro-estrutural, a presença implícita ou explícita de fragmentos ou vestígios de
outros textos, outros sujeitos e outros discursos que mantêm, entre si, uma relação
de confronto ou aliança.
O que o intertexto é para o texto é, no domínio macro-estrutural, o
interdiscurso para o discurso, a saber, a incorporação de elementos de um
discurso em outro:
“[O discurso] é atravessado por muitas vozes dentre as quais se encontram
aquelas que veiculam o poder e aquelas que promovem resistências, vozes
essas que se cruzam, se excluem, mas também se alimentam” (Mascia,
2003: 20).
Se todo discurso define sua identidade em relação aos outros, é de se
pressupor que exista uma heterogeneidade “que é constitutiva do próprio discurso é
que é produzida pela dispersão do sujeito” (Brandão, 2002: 66); ou nas palavras de
Mascia (2003: 37): “Todo discurso é interdiscurso”.
Para Foucault, a verdade das disciplinas científicas surge como um efeito
da verdade dos diferentes discursos cujos fios se interpenetram, se cruzam,
entrelaçam e misturam no campo discursivo18 de uma época ou cultura. Seguindo
essa linha de argumentação, Pêcheux (1983) afirma que um discurso possa ser
atravessado por várias formações discursivas e que não seja possível estabelecer
limites rígidos entre os vários tipos de discurso. Brandão (2002: 52), igualmente,
retoma essa idéia quando explica que “o discurso se tece polifonicamente, num jogo
de várias vozes cruzadas, complementares, concorrentes, contraditórias”. Mussalim
(2001: 131) acrescenta ainda: “As seqüências lingüísticas possíveis de serem
enunciadas por um sujeito circulam entre esta ou aquela formação discursiva que
compõem o interdiscurso”. Maingueneau (1984: 11), enfim, realça que a
interdiscursividade representa um aspecto essencial de todo discurso e uma
condição prévia da sua formação: “O interdiscurso antecede o discurso”.
Quanto às estratégias discursivas, Foucault afirma que elas definem as
escolhas teóricas dentro de uma formação discursiva. “Discursos”, diz o autor, “dão
Maingueneau (1984: 28 apud Brandão 2002: 73) define o campo discursivo assim: “um conjunto de formações
discusivas que se encontram em concorrência, se delimitam reciprocamente em uma região determinada do
universo discursivo”.
18
26
lugar a certas organizações de conceitos, a certos reagrupamentos de objetos, a
certos tipos de enunciação, que formam, segundo seu grau de coerência, de rigor e
de estabilidade, temas ou teorias” (Foucault, 2002b: 71). As ações táticas sobre o
discurso são relacionadas com as diferentes maneiras de tratar os objetos do
discurso, as diversas formas de enunciação e as possibilidades discursivas de
manipular os conceitos (op. cit.: 76). As escolhas estratégicas regularizam, então, a
delimitação dos discursos vizinhos, a relação entre eles e a influência que um exerce
sobre o outro.
Ainda conforme o mesmo autor, a economia e a escolha dos recursos
estratégicos são intimamente ligadas ao campo das práticas não discursivas. Por
conseguinte, não basta determinar os pontos de ruptura em que os novos discursos
emergem e descrever a economia da constelação discursiva; é preciso analisar,
também, a função dos discursos nesse campo das práticas não discursivas. Isso
significa, de um lado, que o discurso reúne os elementos do arquivo sócio-histórico
de conhecimentos de uma cultura e, por isso, deve ser estudado como uma prática
estruturada, encaixada nos sistemas normativos da sociedade, das instituições ou
da economia; do outro lado, convém interpreta-lo como uma rede de estratégias
discursivas já que faz parte, também, dos dispositivos19 que são estabelecidos pela
tradição e agregados às instituições da vida pública.
2.1.4. A arqueologia e a genealogia
Cada discurso representa, então, um conjunto enorme de enunciados e,
simultaneamente, a condição prévia da sua realidade, pois as regras que
caracterizam uma prática discursiva “não se impõem do exterior aos elementos que
eles correlacionam, [mas] estão inseridas no que ligam” (Foucault, 2002b: 147). O
discurso, diz Foucault (id. ibid.), não tem apenas um sentido e uma verdade; ele tem
uma história.
“[Há] na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os
enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de
aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de
utilização)” (op. cit.: 148).
19
Uma definição do conceito de dispositivo segue abaixo.
27
Foucault chama esse sistema funcional que rege o surgimento, a distribuição e a
dispersão dos elementos discursivos de arquivo. Conforme o autor, o arquivo não
representa “a soma de todos os textos que uma cultura guardou”, nem deve ser
confundida com “as instituições que permitem registrar e conservar os discursos” (id.
ibid.). Ele representa um nível particular, “é o sistema geral da formação e da
transformação dos enunciados”. (op. cit.: 150; grifes do original).
“O arquivo é [...] a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o
arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas [...] se agrupam
em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações
múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades
específicas” (Foucault, 2002b: 149).
A reconstrução sistemática do arquivo e dos seus monumentos é tarefa da
arqueologia do saber. Assim sendo, a análise do discurso deve mostrar,
primeiramente, como as estruturas epistêmicas de uma época e cultura constituem o
conhecimento:
“O que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistemê onde os
conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor
racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e
manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição, mas, antes, a
de suas condições de possibilidade” (Foucault, 2002a: XVIII).
Em seguida, é preciso descobrir as hierarquias intrínsecas às regularidades
discursivas e explicar como é possível que certos fenômenos se tornam “fatos” que
produzem o discurso e influenciam o fluxo do conhecimento pelo tempo:
“A descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma
história geral; ela procura descobrir todo o domínio das instituições, dos
processos econômicos, das relações sociais nas quais pode articular-se
uma formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e
sua especificidade não lhe dão, por isso, um status de pura idealidade e de
total independência histórica; o que ela quer revelar é o nível singular em
que a história pode dar lugar a tipos definidos de discurso que têm, eles
próprios, seu tipo de historicidade e que estão relacionados com todo um
conjunto de historicidades diversas“ (Foucault, 2002b: 189).
O resumo do modelo teórico de Foucault mostra que, para um analista do
discurso, não há significados a priori, ocultos atrás dos objetos, ou intenções de um
sujeito homogêneo, livre enquanto centro de iniciativas e senhor da sua vontade.
Tudo é construído! As palavras só adquirem um sentido dentro de uma formação
discursiva e “o sujeito, embora fundamental, porque não existe discurso sem sujeito,
28
perde sua centralidade ao passar a integrar o funcionamento dos enunciados”
(Brandão, 2002: 63). Deste modo, “o discurso atravessado por várias formações
discursivas passa a ser uma dispersão de textos, e o texto uma dispersão do sujeito
que passa a ocupar várias posições enunciativas” (Orlandi e Guimarães, 1986). A
realidade social, então, não é representada pelo discurso, mas é constituída por ele
e o sujeito é o efeito desse jogo discursivo e não o seu ponto de partida. Nessa
visão, são os discursos que “falam” o falante e não o contrário. Eis a materialidade
do discurso.
É evidente, porém, que o discurso não movimenta o mundo sozinho. Há
um conjunto heterogêneo de instituições, construções arquitetônicas, decisões
regularizadoras, leis, medidas administrativas, afirmações científicas e teorias
filosóficas ou éticas que têm sua importância na formação dos objetos e no jogo que
muda as posições e funções dos elementos. Em outras palavras, idéias imateriais e
práticas materiais são unidas por um laço comum: elas podem servir ao mesmo
objetivo. É preciso abandonar, então, a separação rígida entre práticas discursivas e
não discursivas. Isso significa que a noção do texto pode ser estendida, do modo
como Laclau (1981: 176) sugere:
“A meu ver, o discursivo não se refere aos textos no sentido estrito, mas ao
conjunto de fenômenos da produção social de sentido que fundamenta uma
sociedade como tal. Portanto, o discursivo e o não discursivo não
representam dois níveis opostos, pois não existem fenômenos sociais que
são determinados fora do discursivo. A história e a sociedade são um texto
não acabado”.
Certeau (1984: 166), também, defende essa posição quando afirma que “hoje em
dia, o texto é a própria sociedade”. 20
A rede que pode ser tecido entre os elementos discursivos e não
discursivos chama-se “dispositivo”. Conforme Foucault, um dispositivo é uma
formação de discursos, objetos e acontecimentos que responde, num dado momento
histórico, a uma necessidade social. O conceito, então, não abrange apenas todo o
conhecimento dito e escrito (a episteme), mas todo o aparelho ao redor deste
conhecimento que pode impô-lo como legítimo (Jäger 2001:76). A episteme, então, é
apenas a parte discursiva desse aparelho, pois o saber mora também nas ações
humanas e nos objetos produzidos à base dos conhecimentos.
20
“Today the text is society itself”.
29
Quando Foucault fala de uma prática discursiva e mostra que essa prática
se compõe de certos enunciados, nota-se, quase sempre, que ele pensa em
formações e regulamentos que selecionam objetos, distribuem posições de
sujeitos, articulam campos discursivos e manifestam materializações lingüísticas.
Analisar o discurso, então, é descrever os sistemas de dispersão dos enunciados
que o compõem através das suas regras de formação.
Cabe ao analista do discurso aliar a instância lingüística à esfera sóciohistórica e analisar o funcionamento do discurso no entrecruzamento da língua,
enquanto sistema estrutural, e do acontecimento sócio-interativo vinculado à vida
histórica e cultural. Nisso, ele propõe-se a investigar as condições de produção
que “permitem a elocução de um discurso é não de outro” (Mussalim, 2000: 116).
Em outras palavras, ele analisa “o contexto histórico-ideológico e as representações
que o sujeito, a partir da posição que ocupa ao enunciar, faz do seu interlocutor, de
si mesmo, do próprio discurso, etc.” (id. ibid.)
A análise do discurso, diz Foucault (2002b), não é uma disciplina
interpretativa. Ela “não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga,
em declive suave os discursos ao que os precede, envolve ou segue” (op. cit.: 159),
pois, conforme o autor, a continuidade histórica é nada mais que uma ilusão da
interpretação hermenêutica produzida pelos conceitos da tradição, da influência, da
evolução e do espírito. “O problema dela [da análise do discurso] é, pelo contrário,
definir os discursos em sua especificidade” (op.cit.: 159 seg.). Isso significa, antes de
tudo, que o discurso não pode ser reduzido, simplesmente, às intenções dos sujeitos
participantes. “A arqueologia”, por conseguinte, “não é ordenada pela figura
soberana da obra; não busca compreender o momento em que esta se destacou do
horizonte anônimo” (op cit.:160 ) e, já que o discurso representa uma ordem sui
generis, não defende “a instância do sujeito criador, enquanto razão de ser de uma
obra e princípio de sua unidade” (id. ibid.).
O discurso, então, é um campo anônimo cuja configuração define a
posição do sujeito. Logo, o trabalho do analista deve ser diagnóstico (op. cit.: 233):
“Trata-se de revelar as práticas discursivas em sua complexidade e em sua
densidade; mostrar que falar é fazer alguma coisa (op. cit.: 237). Sobretudo, é
preciso completar o trabalho arqueológico da formação discursiva por uma análise
genealógica das
condições de produção e dos mecanismos do poder. Nisso,
convém focalizar particularmente as seguintes três dimensões (Maingueneau, 1987):
30
 o papel das instituições em que o discurso é produzido e as
estratégias que usam para restringir a enunciação;
 os conflitos culturais, sócio-históricos e ideológicos que se
materializam no discurso; e
 a configuração do espaço que cada discurso arruma para si mesmo
no interior do interdiscurso21.
Segundo Foucault (2002b: 8), o que o analista do discurso encontra
primeiramente, no campo das exterioridades de uma sociedade, são monumentos
singulares na sua raridade. Ao descrever esse material, a análise de discurso gera
seus próprios objetos: os discursos históricos no momento do seu surgimento. Na
descrição desses discursos, é possível partir dos assuntos, dos participantes ou das
instituições e disciplinas que organizam o campo discursivo e caracterizam as
práticas discursivas. Em seguida, vale localizar as costuras e os enlaçamentos com
os discursos vizinhos.
Nesse contexto, convém fazer duas observações. Primeiro, é preciso
realçar que um discurso não se define pelo fato de poder abarcar um certo tipo de
enunciados que se referem ao mesmo objeto ou ao mesmo assunto e que recorrem
ao mesmo conjunto de termos ideológicos. É verdade que um conceito ou um tema
podem acumular muitos enunciados no seu redor e, enquanto esquemas de
produção, representam uma energia discursiva que aumenta a probabilidade que
certas posições discursivas opostas se chocam neles, mas poucos conceitos e
temas são específicos a um discurso particular e, enquanto são atuais, é evidente
que ocorrem em vários discursos simultaneamente. Na análise do discurso, portanto,
é mais adequado falar de um ramo discursivo do que de um tema (Jäger, 1993).
“Os diferentes discursos e ramos discursivos são intimamente entrelaçados
e formam, nesta mistura, ‘o novelo discursivo’ que a análise do discurso
deve desenredar; nisso é preciso observar como os diferentes ramos
discursivos se influenciam, quais interseções e sobreposições ocorrem, etc”.
Particularmente importantes para o decorrer de um discurso ou
um ramo discursivo, são os chamados acontecimentos discursivos. Nisso,
não se trata de acontecimentos ‘reais’, como um acidente de uma usina
nuclear ou um resultado de uma eleição, mas o termo diz respeito ao
discurso amplamente desdobrada sobre esses acontecimentos. O
acontecimento [‘real’] e o acontecimento discursivo não correspondem
necessariamente em proporções e importância: Seja quanto forem as vidas
humanas que um acidente de uma usina nuclear custar, se for encoberto,
ele não se tornará um acontecimento discursivo (Jäger, 1993: 157).
21
Sobre a noção de interdiscurso, cf. as explicações abaixo.
31
A figura 2 mostra como Jäger (1993) imagina esse ‘novelo discursivo’ que a análise
do discurso pretende desembaraçar.
Figura 2: O que é um discurso?
acontecimento
discursivo
ramo
discursivo
acontecimento
discursivo
Fonte: Jäger (1993: 156)
A figura 3 na página seguinte tenta ilustrar que os diferentes ramos
discursivos aparecem em diferentes níveis do discurso, por ex., na ciência, na
política, nas mídias, na educação, na economia, na administração ou no cotidiano. É
de se pressupor que os diversos níveis influenciam-se mutuamente e estabelecem
relações recíprocas. Deste modo, é possível que certos fragmentos discursivos do
nível acadêmico sejam acolhidos pelos níveis cotidiano ou midiático. Inversamente,
é provável também que elementos do cotidiano ou das mídias sejam empregados no
nível acadêmico. Ao atravessar os diferentes níveis discursivos, o conjunto dos
32
ramos discursivos de uma época forma o discurso total de uma sociedade dada.
Cada indivíduo é envolvido em certos ramos discursivos. Isso significa, como
observa Voloshinov (1983 e 1997) que todo enunciado tem intrinsecamente um
caráter social. Ainda assim, é impossível que cada texto individual contém
quantitativa e qualitativamente todos os elementos de um ramo discursivo. Todavia,
mesmo que o texto seja individualmente produzido e mesmo que ele possa definir
apenas um certo segmento temático do social, como enunciado social ele tem que
ser representado como fragmento de um ramo discursivo e, deste modo, ser
encaixado no contexto social mais abrangente. Uma análise válida de um nível ou
um ramo discursivos, conseqüentemente, deve estudar um número representativo
de fragmentos discursivos.
Figura 3: Os níveis do discurso
Fonte: Jäger (1993: 183)
33
A segunda advertência refere-se às modalidades enunciativas às quais as
diferentes posições de sujeito proporcionam acesso. Um discurso não se distingue
do outro, apenas, por um certo estilo de enunciação; pois, ainda que seja inegável
que o estilo comum facilita a co-existência de enunciados heterogêneos no mesmo
espaço discursivo, o critério decisivo só pode encontrar-se no jogo organizado pelas
regras de formação no qual um conjunto de enunciados se envolve, num dado
momento histórico, para formar um discurso. A particularidade de um discurso,
então, não se constitui pelas maneiras da sua realização lingüística, mas pelas
relações que fazem de uma série de signos um enunciado.
Visto isso, o analista do discurso não tem como objetivo a compreensão
hermenêutica de um documento (Foucault 2002b: 160), mas o questionamento do
conceito de verdade no qual a racionalidade do texto se baseia:
“A análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade de
um sentido; ela mostra à luz do dia o jogo da rarefação imposta, com um
poder fundamental de afirmação” (Foucault, 2000: 70).
Por conseguinte, ele deve perguntar-se: quais são as regras que dominam a
formação do conhecimento compartilhado coletivamente (descrição da estrutura do
discurso); como as práticas discursivas se encaixam no contexto social (descrição
da relação entre o discurso e seu ambiente); e como os objetos discursivos
aparecem e se transformam (análise da dinâmica do discurso)? Em outras palavras,
ao explorar as regularidades enunciativas, o analista do discurso deve expor aquilo
que o texto tenta esconder.
2.1.5. Razão e poder
Analisar o discurso significa descrever as regras de formação que
constituem o sistema de dispersão dos seus enunciados. Ora, se vale dizer que
certas afirmações, perguntas, problemas ou pontos de vista podem aparecer nos
fragmentos discursivos de uma época, é igualmente possível afirmar que outros
enunciados são excluídos devido às regras internas do discurso. Os efeitos dessas
exclusões podem ser intensificados institucionalmente.
34
Ao ocupar-se com os processos sociais e as estratégias discursivas que
querem alargar ou diminuir o campo dos possíveis enunciados, a análise do discurso
inclui a dimensão de poder na suas investigações empíricas e nas suas
construções teóricas. Para Foucault, há uma ligação íntima entre o poder e o
conhecimento; pois é de se pressupor, de um lado, que a produção de
conhecimento seja controlada socialmente e, do outro lado, sabe-se que esse
controle social, por sua vez, se baseia no conhecimento já produzido. Nenhum lugar
e nenhum valor são intocados pelo poder, pois o poder se mostra cada vez que
alguma coisa se torna um evento discursivo e, desse modo, um objeto do
conhecimento.
Os eventos discursivos não são discursos sobre acontecimentos ‘reais’,
mas são modos de afirmar ou questionar as verdades legitimas dos discursos
hegemoniais. Seu ponto de partida encontra-se nos problemas reais, no lugar dos
combates simbólicos que transformam a sociedade. Eles corroboram ou
problematizam as verdades historicamente válidas e produzem novas verdades e
realidades sociais. O poder, então, não é apenas repressiva, mas também criativa.
Nessa perspectiva, há mecanismos e instâncias que facilitam a distinção
entre enunciados verdadeiros e falsos e que estabelecem as sanções. Em outras
palavras, na busca da verdade há certas técnicas e métodos privilegiados:
“Cada sociedade controla suas formas de pensamento e enunciação e
realiza uma política da verdade, ou seja, ela aceita certos discursos como
verdadeiros e rejeita os outros como falsos ou errôneos; ela desenvolve
técnicas e métodos para reconhecer a verdade e para estabelecer critérios
que permitem a classificação dos discursos como verdadeiros ou falsos”
(Bublitz, 2001: 32).
Ambas as dimensões do discurso, o poder e o conhecimento, são
associados intimamente. Elas exercem efeitos coercivos num campo estratégico, i.
e., é de se pressupor que os elementos do saber representam, simultaneamente, um
elemento do sistema do poder e, inversamente, os mecanismos de poder se
fundamentem sempre no sistema dos saberes.
“O poder”, diz Foucault, não pode ser interpretado como “um sistema geral
de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre outro e cujos efeitos, por
derivações sucessivas, atravessam o corpo social inteiro” (Foucault, 2001: 88). No
mundo moderno não existe mais um centro concreto que estabeleça, exerça e
35
mantenha o controle, mas uma rede infinita de correlações de poder e
“constelações de interesses” (Janicaud, 1991: 270).
“O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa
potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação
estratégica complexa numa sociedade determinada. [...] O poder não é algo
que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe
escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações
desiguais e móveis” (Foucault, 2001: 89).
No mundo ocidental, a vontade do cidadão e a soberania do governo
foram substituídos pela experiência do especialista e pela autorização local de
controle. Foucault substitui, conseqüentemente, o antigo modelo jurídico, que pensa
o poder nos termos de um contrato social e da proibição e punição de sujeitos, por
um modelo estratégico (Foucault, 2001: 97) que questiona a ficção de sujeitos préexistentes e se baseia na visão de uma sociedade disciplinada por normas que
funcionam silenciosamente (cf. Plumpe & Kammler, 1980: 210).
“O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa
potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação
estratégica complexa numa sociedade determinada. [...] Não há, no
princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária
e global entre os dominadores e os dominados, dualidade que repercuta de
alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do
corpo social” (Foucault, 2001: 89 - 90).
Nesse modelo, não há lugar para sujeitos que produzem e legitimam sua
própria subjugação ao ceder seus direitos ao rei ou ao estado. Assim sendo, a visão
do leviatã, invocada por Hobbes, torna-se um mero efeito ideológico que esconde os
verdadeiros mecanismos do poder. Conforme Foucault, a maquina moderna, ao
produzir súditos úteis, não trabalha mais com um código legal, mas com um código
científico. As normas científicas triunfaram obviamente sobre a lei constitucional. A
disciplina contemporânea deixou o mundo da lei e do direito, que pertencem a um
discurso em extinção, e começou a substituir os princípios legais pelos princípios
das normas físicas, psicológicas e morais (cf. Walzer, 1991: 273). Hoje em dia, a
racionalidade do poder é a racionalidade de estratégias.
“Você acredita que alguém obedeceria ainda o poder se ele fosse
repressivo exclusivamente, se ele nunca fizesse outra coisa que negar?
Ora, a razão porque o poder domina, porque ele é aceito, é simplesmente
que ele não nos oprime como uma força negativa, mas, na verdade,
36
atravessa os corpos, produz as coisas, provoca os prazeres e produz o
conhecimento” (Foucault, 1978: 35; trad. HPW).
Os indivíduos, diz Foucault, não circulam apenas nas malhas da rede de
poder, mas ocupam sempre uma posição em que experimentam e exercem o poder
simultaneamente. “Eles nunca são o alvo imóvel e consciente desse poder, mas
sempre seu elemento de ligação” (apud Walzer, 1991: 267). O poder, então, só pode
ser concebido junto com a possibilidade da resistência: “Onde há poder, há
resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em
posição de exterioridade em relação ao poder” (Foucault, 2001: 91). Em outras
palavras: “[Não existe] um lugar da grande Recusa – alma da revolta, foco de todas
as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são
casos únicos” (op. cit.: 91).
A ordem do discurso não é estabelecida pela intervenção da vontade, mas
pelo poder. Inversamente, o poder e o saber são distribuídos e estabelecidos pelo
discurso. “[Contudo], não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o
discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o
dominado; mas ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que
podem entrar em estratégias diferentes” (Foucault, 2001: 95). Os discursos, então,
não se submetem inequivocamente ao poder e, igualmente, não se oponham
decididamente a ele.
Os discursos, assim, contribuem na estruturação das relações de poder e,
deste modo, representam, eles mesmos, um fator do poder:
“É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser,
ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo,
escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O
discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe,
debilita e permite barrá-lo” (Foucault, 2001: 96).
O poder se impõe discursivamente. O discurso define e legitima a área da
verdade e, sendo assim, exerce um poder social. Esse poder do discurso é
debatido; nomeadamente as instituições políticas querem apoderar-se dele:
“Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”
(Foucault, 2000: 9).
37
Assim sendo, Foucault descreve um conjunto de procedimentos que
funcionam como controle e delimitação do discurso. A tabela 1 mostra que a
usurpação do discurso e sua regulamentação se realizam, em parte, por sistemas
exteriores de exclusão que funcionam como disfarces das verdadeiras forças que
estão por trás do jogo discursivo. A saber, esse tipo de pressão coercitiva visa a
controlar o desejo e o poder e encobre, por assim dizer, os prazeres com o véu da
verdade (op. cit.: 20). Foucault menciona, nesse contexto, a restrição ou proibição de
objetos discursivos (“palavras proibidas”), o ritual da circunstância e o privilegio do
sujeito (op. cit.: 9). Ao mesmo grupo de procedimentos pertencem, também, a
classificação e rejeição de enunciados supostamente absurdos (“separação entre
razão e loucura”) (op. cit.: 10) e a separação institucionalizada do verdadeiro e do
falso (“vontade de verdade”) (op. cit.: 13).
Tabela1: Procedimentos da rarefação e do controle do discurso
PROCEDIMENTOS DA RAREFAÇÃO E DO CONTROLE DO DISCURSO
(CONFORME: MICHEL FOUCAULT, 2000: A ORDEM DO DISCURSO. SP: ED. LOYOLA)
1. Procedimentos de
exclusão:
controle do desejo e do
poder: diferenciação do
interior e do exterior do
discurso.
2. Procedimentos do
controle interno:
controle da casualidade
e da produção
discursiva: formação da
identidade.
3. Procedimentos da
rarefação do sujeito
falante: controle do
acesso ao discurso:
formação do sujeito
A. Interdição:
a) tabu do objeto
b) ritual da circunstância
c) direito privilegiado ou
exclusivo do sujeito
A. Comentário:
identidade na forma da
repetição do mesmo
A: Rituais (por ex.:
audiência num processo
judicial, culto religioso,
sessão de psicoterapia)
B. Oposição da razão e da B. Autor:
loucura
identidade na forma da
individualidade e do eu
B. Sociedade de discurso
(por ex.: rapsodos,
escritores)
C. Oposição do verdadeiro C. Disciplina:
e do falso
identidade na forma de
uma re-atualização
permanente das regras
C. Doutrinas (por ex.: os
dez mandamentos,
programas políticos)
D. Apropriação social dos
discurso (por ex.: o
sistema educacional)
38
Outra parte do regime da produção discursiva provém de procedimentos
internos, tais como a repetição do mesmo instaurada pela distinção entre os
discursos fundamentais e seus comentários considerados secundários (op. cit.: 21 26), o princípio do autor que estabelece a identidade subjetiva e proporciona uma
origem e uma unidade às significações de um discurso (op. cit.: 26 – 29) e a
organização das disciplinas que garante a re-atualização permanente das regras
discursivas e, deste modo, delimita a construção de novos enunciados (op. cit. 29 –
36).
Numa terceira parte, enfim, o fluxo do discurso é controlado por
exigências funcionais que não permitem que todo mundo tenha acesso ao
discurso. Nisso, Foucault reporta-se à ritualização da palavra que “define a
qualificação que devem possuir os indivíduos que falam” (op. cit.: 39), a organização
de “sociedades de discurso” (id. ibid.) que determinam a produção, conservação e
distribuição dos discursos, a formação de grupos doutrinários “que liga[m] os
indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, conseqüentemente, todos os
outros” (op. cit.: 43) e as divisões sociais que regulam o acesso aos discursos e a
apropriação do conhecimento e do poder contido neles (id. ibid.).
Os sistemas de exclusão têm todos em comum que querem legitimar e
reproduzir a ordem vigente do discurso e reprimir a produção desenfreada dos
eventos discursivos:
“Tudo se passa como se interdições, supressões, fronteiras e limites
tivessem sido dispostos de modo a dominar, ao menos em parte, a grande
proliferação do discurso. De modo a que sua riqueza fosse aliviada de sua
parte mais perigosa e que sua desordem fosse organizada segundo figuras
que esquivassem o mais incontrolável” (Foucault, 2000: 50).
O discurso estabelece a unidade e a ordem sociais através de
processos constitutivos e classificatórios e, ao mesmo tempo, contribui na sua
fragmentação através da categorização do pensamento e de práticas divisórias. O
conhecimento, evidentemente, estabelece-se na sociedade por processos de
avaliação, separação e distribuição. As possibilidades ilimitadas do discurso são
controladas, restringidas e escasseadas permanentemente.
Observa-se, no entanto, que o lugar do controle é, ao mesmo tempo, o
lugar da transgressão, pois o discurso não estabelece apenas a ordem, mas
também a transforma continuamente em desordem, pois, apesar das pressões da
39
ordem vigente, os sujeitos que obtêm um acesso ao discurso nem sempre são
subjugados, determinados e obedientes inteiramente. Foucault percebe isso
claramente, quando corrige seu conceito original da ordem do discurso:
“Acredito que naquela ‘Ordem do Discurso’ misturei duas concepções, ou
seja, que propus uma resposta inadequada a uma pergunta que me parece
legítima (a da ligação entre os fatos discursivos e as relações do poder).
Trata-se de um texto que escrevi numa fase transitória. Me parece que, até
então, eu aceitei o conceito tradicional do poder como um mecanismo
essencialmente jurídico, como aquilo que a lei diz, que proíbe, que diz não
com toda uma série de efeitos negativos: exclusão, rejeição, impedimento,
negação, disfarce, etc. Hoje considero essa concepção inadequada”
(Foucault, 1977: 228; tradução HPW).
O discurso, então, tem um caráter constitutivo porque afirma, nega, questiona e
transcende simultaneamente as ordens do poder e da verdade.
É possível estudar, nesses “jogos de limitações e exclusões” (op. cit.: 45),
como as categorias desenvolvidas nos diferentes arquivos de conhecimento se
transformam em mecanismos de classificação e diferenciação social. A saber,
cada sociedade tem sua ordem do poder e sua ordem da verdade, Ela aceita certos
discursos como legítimos porque permitem uma distinção entre verdadeiro e falso e
recorrem a técnicas privilegiadas de construir e divulgar a verdade e mantê-la em
circulação.
A verdade é ligada às técnicas e aos efeitos de poder. Ela é
historicamente inventada e tem seus efeitos dentro da hegemonia22 social,
econômica e cultural. Foucault fala de técnicas culturais que transformam os homens
em sujeitos (Dreyfus & Rabinow, 1987: 246). A subjetividade, então, é submetida às
coerções das materialidades lingüística e social que estabelecem as condições de
produção, ou seja, é assujeitada a uma ordem superior. Ao mesmo tempo, em que o
sujeito é interpelado pela ideologia, ele ocupa, na formação discursiva que o
determina, com sua história particular, um lugar que é especificamente seu. Ora, “as
imagens que os interlocutores fazem de si e do outro [dependem] do lugar que eles
ocupam no contexto histórico-social” (Mascia, 2003: 28). Conforme Pêcheux (1995:
85), toda formação social é influenciada por determinadas regras de projeção que
definem o contexto dos eventos discursivos e as posições subjetivas. A relação entre
as posições subjetivas dos interlocutores não se configura aleatoriamente. Ela é
determinada por regras que a análise das condições de produção pode revelar.
22
Sobre a noção de hegemonia cf. Kallscheuer, 1987; Kramer, 1975 e Portelli 1977: 61 - 83
40
É possível criticar ou problematizar o discurso (dominante), mas o crítico
tem que se conscientizar de que sua crítica não o posicione fora do discurso. “A
resistência nunca se encontra fora do poder” (Foucault, 1983; trad. HPW). Seja qual
for a posição do sujeito, ele não pode recorrer à “verdade” e deve lembrar-se sempre
de que as opiniões, os valores, as normas ou as leis defendidas sempre são
historicamente fundadas no discurso. Sua posição, portanto, sempre representará o
resultado de um processo discursivo.
O discurso, evidentemente, não é interessante apenas como uma prática
social, mas serve, sempre, a uma determinada finalidade. Os enunciados exercem
efeitos de poder quando se ligam às instituições e aos regulamentos. Um efeito do
discurso socialmente produzido é que a sociedade tem que se defender
permanentemente das tendências anti-sociais e patológicas e das classes e dos
indivíduos “perigosos” que ela mesma produziu e que exigem intervenções
corretivas por representarem uma ameaça contínua à regularidade dificilmente
estabelecida do conhecimento e da prática social. “Em resumo, .... a questão não é o
engano, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia, mas a própria verdade.”
(Foucault, 1978: 54).
É claro que o desaparecimento do sujeito autônomo nos capilares do
poder ideológico implica numa atitude pessimista com respeito às possibilidades
das ações intencionais dos indivíduos e da política em geral. Deste modo, mesmo
que parece plausível que “toda relação de poder traz a possibilidade de resistência”
(Coraçini, 2003: 14), não é raro que pensadores pós-modernistas se conformam com
a mesma visão que Wolfgang Welsch (1987: 17) expõe no seu livro sobre o mundo
pós-modernista:
As possibilidades
históricas são representadas e
analisadas
minuciosamente e as sociedades industializadas assumiram uma forma de
reprodução que não precisa nem poderia precisar de novos conceitos e
novos valores ou, em geral, de novos impulsos se eles apareçessem. O
que funciona e contiunuará funcionando é o aparelho sócio-económico do
abastecimento das massas humanas cada vez maiores. O resto – dos
planos fantásticos para mudar o mundo ate o protesto numa pequena
parcela siocial - tudo é ilusão e permanece efêmero e imitativo. As únicas
forças decisivas são de natureza institucional-técnica; os esforços culturalintelectuais são mero teatro.23
Die geschichtlichen Möglichkeiten sind durchgespielt, und die Industriegesellschaften haben eine
Reproduktionsform angenommen, die neue Konzeptye, neue Werte überhaupt neue Impulse weder braucht noch,
wenn sie denn aufträten, brauchen könnte. Was läuft und weiterläuft ist der sozioökonomische Apparat der
Versorgung ständig wachsender Menschenmassen. Alles andere – von der grossen Schlüsselattitüde bis zum
Parzellenprotest – ist Illusion, bleibt ephemer und epigonal. Die bewegenden Kräfte sind allein institutionelltechnischer Art, die kulturell-geistigen bloss noch Theater.
23
41
2.2. As diferentes abordagens da escola francesa da análise do discurso
Os estudos já realizados no âmbito da análise do discurso da escola
francesa assumem, de modo geral, duas perspectivas diferentes cujas implicações
opostas muitas vezes são ignoradas. De um lado, os discursos são lidos com
respeito à estratificação social. Nesse sentido, o discurso é o lugar onde as
ideologias se encontram e a análise do discurso é a análise da dimensão ideológica
do uso lingüístico e da materialização de uma ideologia na língua. Nesta
perspectiva, a questão central é: quais são as interdependências entre a posição
social e a forma lingüística articulada? Do outro lado, há uma perspectiva que se
interessa mais para a emergência e a diferenciação dos discursos. Essa
abordagem pergunta em que medida e à base de qual divisão de trabalho, os
discursos representam as diferentes áreas de conhecimento de uma sociedade.
Quais são as associações, seleções e exclusões e como ocorre a redução e a
totalização
imaginária
no
interdiscurso?
Investiga-se,
também,
como
os
acontecimentos discursivos modificam o discurso e como os discursos mais
especializados em estrutura, posição e função se formam à base de outros, mais
gerais.
Enquanto as abordagens marxistas (da sociolingüística a Pêcheux) têm
em mira, particularmente, o eixo vertical, que representa a estratificação social, as
abordagens
mais
“estruturalistas”
(de
Foucault
a
Link)
se
ocupam,
preferencialmente, com o eixo horizontal e a divisão funcional dos discursos.
Talvez seja adequado dizer que os estudos do primeiro eixo se ocupam mais das
ideologias e das formas específicas da prática de uma classe social, enquanto os
trabalhos que se interessam mais pelo segundo eixo focalizam, sobretudo os
estereótipos e as mentalidades que circulam em todas as classes sociais (o que não
significa que eles sejam ideologicamente neutros).
A forma mais comum da análise do discurso, sem dúvida, é a análise
lexicológica ou semântica de palavras, conceitos e metáforas. Nessa abordagem, as
questões principais são: Quais palavras ocorrem nos textos; onde, quando e com
qual freqüência? Quais complementaridades, oposições ou substituições existem
entre essas palavras ou sintagmas? Um problema de todas as análises de discurso
que se orientam no léxico ou no tema, é a representatividade das suas fontes e dos
42
seus resultados. Uma solução possível é trabalhar com um corpus tão abrangente
que sua análise ganha significância estatística. Isso é a abordagem da lexicometria,
que realiza uma análise lexicológica de grande escala com a ajuda de
computadores. Ela não seleciona apenas certas palavras-chave, conceitos ou
sintagmas, mas inclui conjuntos enormes de textos com todos os seus elementos.
Uma desvantagem desse tipo de análise é que o computador consegue apenas ler
as palavras, enquanto as estruturas sintáticas, nas quais as palavras recebem seu
sentido e se transformem em discurso, não podem ser avaliadas eletronicamente.
Eis o ponto de partida de outros métodos analíticos da escola francesa da
análise do discurso. A origem comum dessas abordagens encontra-se na recepção
do distribucionalismo de Zellig Harris (1952) nos anos 60. A abordagem de Harris
– longe das análises tradicionais de conteúdo – trouxe, como novidade, uma guia
objetiva de leitura que se apóia, exclusivamente, nas regras formais da gramática.
Com esse instrumento, é possível desmontar os textos em segmentos lingüísticos e
reunir os fragmentos conforme conceitos e temas tipológicos. Desse modo, a
morfologia supostamente única de cada texto e nivelada e a estrutura semântica de
diferentes textos pode ser comparada sem intervenções diretas no conteúdo. O
resultado desse tipo de análise é uma tipologia “objetiva” de discursos especiais
(políticos, sócias, etc.) baseada em critérios sociolingüísticos.
Contra esse método, levantou-se a objeção que ele pressupusesse uma
isomorfia entre o discurso e a prática social e que os discursos são concebidos como
um simples reflexo dos conflitos sociais. Alegou-se que a materialidade particular da
língua e da produção lingüística de sentido não fosse considerada suficientemente.
Justamente aqui, entra o método da “análise automática do discurso”
desenvolvido por Pêcheux (1983, 1984, 1996. 1997a, 1997b). O adjetivo
“automático” não deve ser interpretado no seu sentido técnico, mas, no seu sentido
teórico, como antônimo de “subjetivo”; além disso, ele conota, evidentemente, a
prática
surrealista da
“écriture
automatique”. Ao
contrário
da
abordagem
sóciolingüística, mencionada acima, esse método não aspira a uma hierarquização e
tipologia dos modos de falar, mas a uma representação dos efeitos semânticos que
ocorrem no âmbito de diferentes formações discursivas.
Pêcheux focaliza os efeitos ideológicos que as formações discursivas têm
sobre o posicionamento das pessoas como sujeitos sociais. Seguindo Althusser
(1998), ele afirma que as pessoas vivem na ilusão de serem a fonte do seu próprio
43
discurso, enquanto, na verdade, seu discurso e eles mesmos são o resultado do seu
posicionamento ideológico. As verdadeiras fontes do seu discurso e os processos do
seu posicionamento, geralmente, lhes permanecem escondidos. Eles não têm a
consciência do fato de eles falarem ou escreverem a partir de uma certa posição
discursiva. Além disso, as próprias formações discursivas nas quais as pessoas são
posicionadas também são afeiçoadas pelo complexo conjunto dominante das
formações discursivas que Pêcheux chama de “interdiscurso”.
Este método é muito custoso e complicado; logo ele é adequado apenas
para a comparação de textos curtos e exemplares cujas relações significativas
podem ser representadas frase por frase. Apesar dessa restrição, existem muitas
análises empíricas de discursos que foram elaboradas com esse método. Sobressai,
nesses estudos, que os custos enormes de trabalho se justificam, antes de tudo,
pelo interesse em conhecimentos lingüísticos. O lucro para a pesquisa histórica,
geralmente, é pequeno. Muitas vezes, os resultados confirmam apenas hipóteses já
comprovadas pela pesquisa “tradicional”. Assim sendo, não é de admirar que a
historicista Régine Robin (1986: 160) chega a seguinte conclusão: “Usando nossas
tabelas e classes de equivalência foi possível comprovar, apenas, o que o
conhecimento histórico já sabia anteriormente”.
2.3. O sistema dos símbolos coletivos
Um dilema fundamental do modelo teórico de Foucault é que seu
conceito do discurso oscila entre dois aspectos bastante diferentes que não se
associam coerentemente. A saber, a “Ordem do Discurso”, distingue entre
procedimentos “internos” através do quais os próprios discursos controlam a
produção discursiva e mecanismos “externos” de exclusão que são impostos pelo
poder (Foucault, 2000b). Foucault realça, de um lado, a importância das regras
internas da formação e constituição discursivas; assim sendo, ele vincula seu
conceito do discurso à teoria lingüística. Do outro lado, ele salienta o papel das
práticas e dos rituais e define o discurso através do seu encaixamento institucional,
por exemplo, em bibliotecas, editoras, sociedades de discurso, etc. Essa definição
“externa” liga o modelo de Foucault à teoria sócio-histórica e à sociológica. O
conceito do discurso, assim, diz respeito a todas as questões do enquadramento
social e institucional e aplica-se ao problema da correlação funcional entre o
44
discurso e seus agentes sociais. Baseada em noções lingüísticas, a definição
“interna”, por sua vez, implica em assuntos como o gênero textual, a textualidade ou
o estilo. Entre essas duas definições, ou seja, entre o conhecimento e as
instituições, há uma lacuna que a abordagem de Foucault não consegue preencher
coerentemente, pois o autor descreve bem os métodos de funcionamento e de
reprodução das instâncias sociológicas/institucionais e semióticas, mas ele não
explica onde e como estabelecer uma conexão entre elas.
A passagem que falta na abordagem de Foucault aparece quando se leva
em conta que as atividades comunicativas correspondem às diferentes áreas da
prática e são institucionalizadas conforme a divisão de trabalho de uma dada
sociedade.
De
fato,
Luhmann
(1970,
1975
e
1981;
passim)
explica
pormenorizadamente como a dialética entre a distribuição e a integração das
funções sociais representa simultaneamente uma causa e um princípio da ligação
entre os atores sociais, as instituições e os discursos. Baseado na união incessante
desses processos opostos de divisão e de assimilação que caracterizam a
“diferenciação funcional das sociedades modernas” (Luhmann, op. cit.), as
formações discursivas, de um lado, se caracterizam por uma tendência imanente a
especializar-se cada vez mais e, do outro lado, observa-se simultaneamente “uma
engrenagem cultural” (Link, 1988a: 285), i.e., uma tendência à reintegração e à
união com outras formações discursivas. Link reconhece a importância desse
mecanismo dialético quando afirma:
“O conjunto dos discursos especiais, como parte essencial da estrutura
social é um resultado da divisão das funções e do trabalho nas sociedades
modernas. [...] É importante para cada sociedade que seus discursos
especiais que tendem a afastar-se um do outro sejam reintegrados
mediante um dispositivo de formas interdiscursivas. Entra outras coisas,
fazem parte desse dispositivo, o simbolismo coletivo, i.e., o conjunto de
‘imagens’ através das quais a sociedade ‘pensa’ suas ações, seus
processos, seus conflitos, seus acontecimentos, etc” (Link, 1986a: 14).
Quanto ao processo repartitivo, convém observar que todo tipo de prática
institucionalizada, na medida em que se baseia na divisão do trabalho e nos seus
próprios rituais, corresponde a uma determinada área de conhecimento, ou seja, a
uma formação discursiva particular. Os discursos especiais formam seus próprios
objetos e geram sua própria gramática e seu próprio léxico. Há, portanto, um
discurso médico, jurídico, desportista, etc. É evidente que a tendência de
especializar-se cada vez mais, representa um desafio enorme para a comunicação
45
cotidiana de uma sociedade. Como o engenheiro e o operário ou o médico e o
paciente ainda conseguem comunicar-se?
Conforme Link (1984) eles se compreendem por que além do discurso
especial, existem jogos lingüísticos que promovem um processo integrador que
assume a função de repor certos elementos dos discursos especiais ao
conhecimento comum. Logo, há uma grande quantidade de elementos, segmentos e
estruturas discursivos que pertencem simultaneamente a diferentes campos
discursivos. O conjunto total desses elementos comuns chama-se interdiscurso. A
impressão da unidade cultural, o fato de perceber semelhanças entre o estilo político
e o esporte de uma sociedade - é – entre outros fatores - um efeito desse
interdiscurso.
“Há elementos discursivos [...] que não se delimitam a um único ou poucos
discursos especiais, mas que estão condizentes com vários discursos. Um
exemplo típico é o simbolismo coletivo [...]: hoje em dia não se fala
constantemente de fairness [jogo limpo] apenas no discurso do esporte,
também nos discursos jurídico, político, religiosos, etc; fairness, então, é um
elemento típico do interdiscurso. É possível distinguir os diversos discursos
[...] quanto à sua quota-parte ou participação no interdiscurso. As ciências
especiais, então, estão mais longe do interdiscurso; ao contrário disso, os
discursos jornalístico, político e literário são ancorados muito forte no
interdiscurso. Os elementos (da língua natural) de natureza puramente
semânticos (como símbolos, linguagem floreada, gírias, mitos, caracteres,
palavrório) formam, na sua totalidade, o fundamento de sistemas
ideológicas (Marx/Engels) porque totalizam imaginariamente as áreas
parciais da sociedade.” (Link, Jürgen. (1983). Stichwort “Interdiskurs”.
KultuRRevolution, 4: 66).
Uma outra insuficiência da abordagem de Foucault tem sua origem no fato
de que seu conceito do discurso se refere antes de tudo aos discursos científicos.
Para completar seu modelo e para facilitar, por exemplo, a análise dos discursos
literário, midiático ou cotidiano, é recomendável estender a vista e levar a área dos
discursos não científicos em consideração. Claro que o estudo dos textos desses
níveis do discurso não pode delimitar-se à mera descrição da sua forma ou do seu
conteúdo. Também não é conveniente alargar simplesmente a noção de enunciado
como Foucault a concebeu, mas o quê é preciso descobrir ainda é a relação com a
prática social que se materializa nos diferentes discursos não científicos de uma
certa época ou um certo lugar.
Como já se viu, para resolver o problema dos discursos não científicos,
Link (1982, 1983, 1985, 1986a, 1986b, 1988b, 1992a, 1992b) propõe, num primeiro
46
passo, partir o discurso em duas áreas principais, nomeadamente, o conjunto dos
discursos especiais e o interdiscurso. Conforme o autor, o primeiro inclui as
formações históricas dos discursos especiais no sentido de Foucault, enquanto o
segundo termo, diz respeito às relações transversais que interferem, ligam e
integram os diferentes discursos especiais (cf. Link & Link-Heer, 1990: 92).
Retomando a constatação de Foucault que o discurso inclui “certas áreas
especiais do conhecimento, cujo saber é normalizado, institucionalizado e vinculado
a determinadas ações [...] e que esse saber pode ser enunciado legitimamente
apenas por falantes autorizados”, Link (1986b: 4seg.) afirma, num segundo passo,
que os discursos especiais e o interdiscurso são relacionados pelo fato de o
último incluir “o conjunto bastante selecionado dos conhecimentos gerais de uma
cultura” (op. cit.: 5). De fato, é uma observação comum que os filósofos populares,
os jornalistas e os outros participantes do interdiscurso recorrem freqüentemente ao
conhecimento dos discursos especiais quando discorrem sobre assuntos do
conhecimento geral. Explica-se, desse modo, “a impressão da unidade cultural” que
se impõe, por exemplo, quando descobrimos “semelhanças entre o ‘estilo’ político e
o ‘estilo’ esportivo de uma sociedade” (Link, 1982: 11).
Foucault (2002b) ainda definiu os elementos interdiscursivos como um
mero “conjunto de fatos comparáveis”. Link, no entanto, vê na “configuração
interdiscursiva” de Foucault (2002b) mais do que uma mera relação entre os
discursos especiais. Assim sendo, ele alarga a concepção de Foucault e estabelece
o interdiscurso como um contra-peso aos discursos especiais. A distinção de Link
não representa, então, uma negação do modelo de Foucault, mas um instrumento
para vencer a mencionada incompatibilidade epistemológica que dificulta a
associação das práticas discursivas e não discursivas. O interdiscurso, no modelo de
Link (1986: 5), representa uma aglomeração flutuante dos mais diversos
fragmentos discursivos que se relacionam uns com os outros em graus diferentes e
que são influenciadas continuamente pelos discursos especiais. As formas
interdiscursivas surgem, então, do jogo continuo entre as interferências dos
discursos especiais ou, em outras palavras, os discursos especiais alimentam o
interdiscurso.
O esquema apresentado pela figura 4 na página seguinte mostra como
Link (1986b:2) visualiza seu conceito do discurso: as fatias na metade inferior do
círculo representam os discursos especiais das três grandes áreas discursivas:
47
primeiro, os discursos das ciências naturais, segundo, os discursos das ciências
humana e terceiro, os discursos especiais que são dominados pelo interdiscurso e
que se ocupam, especialmente, com a integração e totalização dos discursos
especiais das sociedades modernas:
Figura 4: O conceito de discurso conforme Link
Fonte: Link (1986b: 2)
“Baseado nos diferentes discursos especiais, acumula-se um conhecimento
geral sobre a cultura nas formas discursivas de natureza totalizadora e
integrativa (por ex., o jornalismo, a ciência popular, a filosofia popular...). O
conjunto dessas informações muito selecionadas chama-se interdiscurso. O
interdiscurso não é regulamentado e sistematizado explicitamente como os
discursos especiais; ele não é obrigado a fornecer definições ou a ser livre
48
de contradições, etc. Tentamos caracterizar o interdiscurso pela imagem de
um novelo flutuante”.24
Quanto às condições de produção do interdiscurso, é de se pressupor
que a mesma relação entre poder e discurso que determina a enunciação das
verdades dos discursos específicos vale para a aceitabilidade ou exclusão de
enunciados interdiscursivos. As diferentes modalidades do interdiscurso são tão
institucionalizadas como os discursos especiais. O discurso hegemonial e as
maneiras de questiona-lo e resistir a ele fazem parte do mesmo jogo discursivo.
Explica-se, assim, porque é impossível simplesmente abandonar uma cultura
hegemônica: ninguém pode fundar uma nova cultura a sós. Deixar uma cultura e
abandonar seu discurso significa entrar em outra cultura e imergir em outro discurso.
Logo, quem quer mudar a sua tem que negociar compromissos e convencer os
outros.
Van Dijk (1977, 1987, 1993a, 1993b e 1997) mostra que os indivíduos
empregam esquemas fixos e modelos ou protótipos (“frames” ou “scripts”) que são
socialmente preestabelecidos e aprendidas no decorrer da socialização. Ainda que
esses esquemas não têm sua origem no indivíduo, é de se pressupor que os
falantes não lhes são subjugados totalmente. Se as condições da vida permitirem
uma alteração das rotinas, seria possível, por princípio, alterar esses esquemas,
mas, de fato, isso ocorre raramente, porque os indivíduos, em geral, preferem
concretizar, compreender e aceitar os esquemas preestabelecidos e enriquecem-nos
apenas com experiências próprias e com informações pormenorizadas provindo das
mídias ou dos outros membros da comunidade (op. cit.: 373).
Conclui-se, então, que a idéia de um sujeito cartesiano, agente das suas
ações é incompatível tanto com o conceito dos discursos especiais de Foucault
quanto com o conceito do interdiscurso de Link. O enunciado é sempre expressão
da heterogeneidade das posições do sujeito. Logo, ao integrar e totalizar o saber
dos discursos especiais, o interdiscurso torna anônima a posição do sujeito.
Conforme Link (1982:11), isso significa que o interdiscurso é capaz de transformar,
24
aus den verschiedensten spezialdiskursen sammelt sich nun in den redeformen mit totalisierendem und
integrierendem charakter (z. bsp. journalismus, z. bsp. populärwissenschaft und populärphilosophie...) ein stark
selektives kulturelles allgemeinwissen, dessen gesamtheit hier interdiskurs genannt wird. der interdiskurs ist nicht
wie die spezialdiskurse explizit geregelt und systematisiert, ihm werden keine definitionen abgefordert, keine
widerspruchsfreiheit usw. bildlich haben wir den interdiskurs als ‘fluktuierendes gewimmel’ zu kennzeichnen
gesucht.
49
“em unidades culturais”, os elementos discursivos que se sobrepõem nos discursos
especiais.
Uma parte importante dessas unidades culturais acha-se no conjunto dos
símbolos coletivos que representa o objeto principal do trabalho analítico de Link
(1982 1986a, 1988 e 1992). Esses símbolos representam signos lingüísticos
particulares à medida que estabelecem uma conexão entre os fenômenos
lingüísticos e não lingüísticos do discurso. Os símbolos coletivos, por definição,
ligam diferentes áreas sociais de experiências. Visto isso, Link (1984: 72) pode
afirmar que o simbolismo coletivo representa um aspecto interno da estrutura
discursiva cuja análise pode facilitar a solução do dilema “discursivo” de Foucault (id.
ibid.).
Um símbolo coletivo pode ser empregado em diferentes campos
discursivos (por ex.: nos discursos político, religioso, erótico, econômico ou cultural)
e a partir dos mais diversos pontos de vista ideológicos. Outrossim, ele contém, além
do conteúdo lingüístico, elementos icônicos que, por si mesmos, já são meios
apropriados para transmitir mensagens inconscientes. Além disso, mesmo que
popularizado, ele ainda tem como conotação um determinado discurso especial
como área de sua origem. Link (1982: 6 seg.) afirma que o repertório desses
símbolos é amplamente divulgado e que os membros de uma sociedade contam
com a realização deles. Em outras palavras, seu emprego como recurso lingüístico
não é aleatório. Sendo assim, os símbolos coletivos representam, ainda conforme o
mesmo autor (1982:8), uma expressão do “sujeito coletivo de uma sociedade”.
Ora, é de se pressupor que cada cultura e cada época dispõem de seu
próprio conjunto de símbolos preferidos coletivamente. Link (id. ibid.) afirma,
portanto, que cada um desses símbolos se encaixa num sistema inteiro que se
baseia no inconsciente coletivo. O autor (1982:10) chama esse sistema o “Sistema
Sincrônica de Símbolos Coletivos” (SiSiCol)25. A experiência mostra que os
símbolos individuais, em geral, não são muito profícuos, nem muito perniciosos para
a reprodução de uma ideologia. Por outro lado, onde há possibilidades
combinatórias e/ou efeitos de contraste, é comum observar que a formação de
cadeias de símbolos amplia sua utilidade prática imensamente. Conseqüentemente,
se o estudo dos símbolos coletivos quiser descobrir como “o fluxo do conhecimento
25
synchrones system der kollektivsymbole = sysykoll
50
pelo tempo” contribui na formação dos sujeitos e na reprodução das relações de
poder, é evidente que sua análise não pode ocupar-se isoladamente de símbolos
individuais. Uma análise do estoque de símbolos coletivos, no entanto, pode
fornecer uma visão geral da realidade social ou da topografia política de uma
sociedade.
Conforme Link (1984), as regras mais importantes da concatenação de
símbolos diferentes baseiam-se em catacreses, i.e., na aplicação de um termo
figurado por falta de um termo próprio. No interdiscurso, essa figura de linguagem
assume funções diversas: primeiro, ela estabelece as conexões entre os enunciados
e as áreas de experiências, segundo, ela lança uma ponte sobre as contradições
implícitas a cada discurso, e terceiro, ela gera plausibilidade, facilita a aceitação e
fortalece, desse modo, o poder dos discursos.
Um exemplo de Jäger (2000) mostra que as catacreses não interpretam
apenas um fato preexistente, mas contribuem na produção da própria realidade: “A
locomotiva do progresso pode ser refreado tanto pela maré de imigrantes que nosso
país cairá numa posição off-side [impedido]26”. É evidente que a locomotiva, o
símbolo do progresso, a maré, o símbolo da ameaça vindo do exterior, e o impedido,
o símbolo da crise econômica e social têm sua origem em diferentes áreas
iconográficas, a saber, no primeiro caso no transito, no segundo caso, na natureza e
no terceiro caso no esporte. Esse pequeno exemplo permite duas observações:
primeiro que o conteúdo icônico de um símbolo pode ser associado ao conteúdo de
outras imagens simbólicas; e segundo, que o mesmo conteúdo tem que se
materializar sempre num enunciado concreto. Essa associação dupla, ao sistema
de símbolos coletivos e ao significado de um enunciado concreto garante a coesão
do interdiscurso de uma época ou uma cultura.
Num outro exemplo, Link (1984:12) explica o esquema básico do
simbolismo coletivo no sistema político da Alemanha. Veja a figura 5 na página
seguinte que o autor comenta assim:
“A linha circular representa o limite do nosso sistema; a linha horizontal
permite a distinção de uma ala esquerda e uma ala direita e do meio (ou
seja, a representação de um sistema político rudimentar). A linha vertical
representa a seção superior, a seção inferior e, novamente, o meio do
nosso sistema. A linha diagonal (que representa uma terceira dimensão),
26
Die Lokomotive des Fortschrittskann durch Fluten von Einwanderern gebremst werden, so dass unser Land ins
Abseits gerät.
51
finalmente, estabelece o eixo para trás – no meio – para frente que é
interpretado, freqüentemente, de maneira temporal: reação – progresso”.
Figura 5: O esquema básico do simbolismo coletivo na política alemã
em cima (+)
FORA
ponte
DENTRO
hierarquia
à esquerda
anterior (+)
à direita
no meio (+)
abertura
posterior (-)
em baixo (-)
Fonte: Link, 1984: 15
Como mostra a figura 6, na página 52, o autor alarga esse esquema básico
em seguida e enriquece o tópico com diferentes símbolos cuja escolha não é
aleatória. Link comenta esse esquema ampliado assim:
“Eu mostro o progresso se movendo para cima como um foguete ou como
um submarino emergindo no mar. Em baixo da linha horizontal encontra-se
a escuridão do submundo, da selva ou da Idade Média e da Idade da
Pedra. Como se vê, nosso sistema realmente se assemelha muito a um
submarino ou a uma estação espacial; por isso, acredito que o ‘snorkel’
telescópico não pudesse faltar; refiro-me ao cano em cima que representa a
conexão com aquele elemento exposto do nosso sistema que também pode
ser identificado como uma enclave ligada por um corredor.
O objeto inversamente correspondente ao corredor é a galeria subversiva
que, vindo de fora, pode ser cravado em nosso sistema (não é um acaso
que ela aparece como uma serpente). Por esse caminho, a maré pode
infiltrar-se e o câncer pode espalhar-se dentro de nos [...], no caso mais
extremo, a fenda formada pelo corredor interno pode atravessar todo o
sistema e racha-lo [...]. No centro do nosso sistema, encontra-se nosso
coração, nosso motor ou nossa fonte de energia (por conseguinte, tudo que
se encontra no exterior, literalmente, não tem coração). Se não queremos
cair numa situação difícil, é indispensável manter o equilíbrio; sobretudo, é
preciso manter as paredes exteriores do caldeirão impermeáveis [...] ao
caos da maré, do deserto, do mar glacial, da selva, do universo vácuo, das
52
53
trovadas, dos relâmpagos, das tempestades, dos fogos, da noite escura,
dos monstros e dos vírus. No meio do seu tanque encontra-se o sujeito:
seja como ‘eu’ ou seja como ‘nós’, ele é igualmente singular no meio da sua
propriedade – enquanto lá fora, a escuridão [...] aumenta cada vez mais”
(Link, 1984: 13).27
Nota-se que a área interior é representada por símbolos que tem sua
razão de ser, em última instância, no corpo humano ou nos veículos industriais, por
exemplo, no carro, no foguete ou no submarino. Para a área exterior, encontram-se
símbolos que marcam o caos: a maré, o fogo, a tempestade, etc. É comum, também,
referir-se aos inimigos interiores e exteriores com símbolos que lhes negam o status
de um sujeito: animais selvagens, feras, parasitas, etc. Conforme Link, todas essas
figuras pertencem ao SiSiCol, porque são compreendidos imediatamente por
todos os membros da sociedade alemã. Para ilustrar o assunto, o autor dá uma série
de exemplos:
“Devido à sua ambivalência, o submarino representa simultaneamente o
símbolo mais perigoso e mais fascinante do ‘nosso’ sistema industrial
militarmente fechado (...). Quando o submarino caça com seus torpedos os
petroleiros, ele se transforma num tubarão e, deste modo, coloca a
subversão e o caos ao serviço do sistema” (op. cit.: 15)28.
No texto seguinte, publicado no jornal Süddeutsche Zeitung (Walter
Slotsch, SZ, 18/08/1973; apud Link, 1982: 10), mostra-se como o símbolo do carro
pode assumir sua função num texto jornalístico:
“O freio de um pneu só. O carro apressado da conjuntura econômica alemã,
atualmente muito favorável, foi freado apenas em um pneu, nomeadamente,
27
ich lasse den fortschritt sich nach oben bewegen wie eine rakete, auch wohl wie ein auftauchendes u-boot.
unterhalb der horizontale befindet sich die finsternis des untergrundes, des urwakldes und dschungels, ggfs. auch
des mittelalters und der steinzeit. wie man sieht, ist unser system wirklich am meisten einem u-boot oder einer
raumstation ähnlich; deshalb durfte, wie ich meine, der ausfahrbare schnorchel, d. h. die röhre (pipe-line) oben
nicht fehlen, die die verbindung zum exponierten glied unseres systems (auch exclave mit korridor genannt)
sicherstellt.
das umgekehrte pedant des korridors ist der subversive stollen, der von aussen in unser system hineingegraben
werden kann (er sieht nicht zufällig wie eine schlange aus). so kann die fl]ut einsickern, der krebs sich mitten in
uns hineinfressen. (...) im äussersten fall könnte der innere korridor, der spalt, durch das gesamte system reichen
und es spalten (...) in der mitte unseres systems sitzt unser herz (weshalb alle aussen vor befindliuchen per se
herzlos sein werden), auch unser motor oder unser energieaggregat. sollen wir nicht in eine schieflage geraten,
so ist ausgewogenheit unbedingt geboten – und vor allem müssen die aussenwände des kessels (...) gegen das
chãos aus flut, wüste, eiswüste, dschungel, leeren weltraum, gewittern, blitzen, bränden, stürmen, dunkler nacht,
ungeheurern und viren absolut wasserdicht halten. in der mitte seine panzers sitzt das subjekt: als ‘ich’ und als
‘wir’ gleichermassen einzig in seinem eigentum – während draussen die finsternis (...) noch dichter wird.”
28 “das u-boot ist vor allem aufgrund seiner ambivalenz das gleichzeitig gefährlichste und faszinierendste symbol
‚unseres‘ militant-geschlossenen industriesystems (...) wenn das boot mit torpedos die tanker jagt, verwndelt es
sich selbst in einen hai, stellt noch subversion und chaos in den dienst des systems.“
54
o monetário. Assim é fácil derrapar. Os outros pneus continuam correr sem
entraves: os gastos públicos, as exportações e os salários”. 29
Dependendo do assunto e do contexto, é possível associar os mais
diversos símbolos. As catacreses facilitam, deste modo, a ligação dos diferentes
conjuntos de símbolos coletivos. O resultado desse processo discursivo é que o
sistema dos símbolos coletivos sobre-põe-se ao discurso como uma rede e, deste
modo, contribui na sua solidez. Link (1988b) fala de meandros de catacreses que
‘migram’ como um laço enredado pelos ramos discursivos, e ele oferece o seguinte
texto como exemplo:
“É cada vez maior, a compreensão dos políticos pelo fato de que a maré
dos estrangeiros que procuram um asilo político na Alemanha [...] tem que
ser retido. [...] Mas aqueles que seguiram o desejo de viver melhor do que
em casa, mesmo que seja apenas com o descanso na ‘rede social’, devem
ser remetidos. [...] O Partido Social-Democrático [SPD] e o Partido LiberalDemocrático [FDP] criticaram aqueles políticos da União Cristão-Social
[CDU] duramente que inventaram a palavra-chave ‘campo de
concentração’: todavia, se o processo do asilo deve ser instaurado
localmente ao redor dos aeroportos, é impossível [...] fazer da palavra
‘campo’ um tabu. (apud Link, 1988: 49).
Observa-se, nesse pequeno fragmento discursivo, que o autor recorre a vários
símbolos: a maré, a rede social e o campo de concentração são ligados por
catacreses. Conforme Link, o que importa, nessas imagens é que os refugiados são
representados como uma maré perigosa contra a qual é preciso construir barragens,
ou seja, os assustadores campos de concentração.
Tudo isso mostra que é possível, de fato, ler a dispersão dos símbolos
como um meandro de catacreses cujas alterações e cujos ciclos de reprodução
obedecem a certas regularidades. Nisso, é de se pressupor que o reservatório dos
símbolos coletivos (por ex.: balão, trem, navio a vapor, etc.) que aparecem numa
dada época histórica ou numa dada área lingüística seja delimitado, mesmo que seja
possível, logicamente, de alargar continuamente esse fundo de símbolos. Sendo
assim convém elaborar uma grade de analogias que projeta o espaço do discurso
contemporâneo.
O estudo dos fragmentos discursivos de uma cultura ou época mostra que
os símbolos coletivos dispõem de uma capacidade enorme de reprodução cultural.
Die Einradbremse. Der dahineilende Wagen der deutschen Hochkonjunktur wurde nur auf einem Rad, nämlich
dem monetären gebremst. So kann man leicht ins Schleudern kommen. Die übrigen Räder laufen ungehemmt
weiter: die öffentlichen Ausgaben, die Ausfuihren und die Löhne.
29
55
Os membros de uma comunidade gostam de repeti-los e copia-los. Desse modo, o
SiSiCol é co-autor em todos os poemas, romances, mitos ou telenovelas; ele se
inscreve nas fofocas, nas disputas, na propaganda e nas notícias. Além disso, seus
elementos se caracterizam por uma capacidade enorme de formar paráfrases. Tudo
isso mostra que é possível resumir num único símbolo uma mensagem inteira; pois
um símbolo coletivo harmoniza e une, imaginariamente, os pontos de vista das mais
diversas ideologias e as mais diversas áreas da prática. A rede de catacreses
produz redes ideológicas e no inconsciente surgem conexões imaginárias, por
exemplo, entre esporte e sexualidade, entre cultura e política. Com efeito, os
símbolos coletivos conseguem reunir experiências das mais diferentes áreas sociais
e certas posições que, em hipótese, são facilmente distinguíveis, de repente podem
tornar-se difusas.
Todo acontecimento “real” é percebido inconscientemente pelo filtro do
SiSiCol e as possibilidades combinatórias entre os diferentes símbolos facilitam a
concatenação de diferentes ramos discursivos e fortalece os diferentes pontos de
vista ideológicos. Pois o uso de símbolos implica nas avaliações: “Nós somos
saudáveis, os outros doentes – nem pergunte o que é melhor” (Link, 1982: 12). O
fundamento dessas avaliações ideológicas encontra-se sempre na oposição
“sistema próprio vs. sistema alheio (ou caos)” (id. ibid.). É claro que o sistema
próprio sempre representa o lado positivo desta oposição simbólica.
Conforme Van Dijk (1987), a solidez dos discursos, seu embasamento
social e sua ampla distribuição devem-se, antes de tudo, aos esquemas adquiridos
de pensamento e ao fato de que a produção e consolidação do discurso ocorrem no
ambiente de um simbolismo estabelecido firmemente pelos discursos dominantes.
Nenhum acontecimento, nenhuma notícia é codificada apropriadamente se ele não
recorre a esse simbolismo coletivo. O sistema de símbolos coletivos (SiSiCol), deste
modo, representa “a cola dos discursos” (Link, 1982:11ou, melhor ainda:
“O SiSiCol é [...] a cola da sociedade, ele sugere, à fantasia, uma totalidade
imaginária da sociedade e dos indivíduos. Enquanto nossa compreensão da
sociedade real e do nosso sujeito real é bastante limitada, em nossa cultura,
devido à grade de significados simbólicos, sentimos-nos sempre em casa.
Sabemos nada sobre câncer, mas entendemos imediatamente porque o
terrorismo é o câncer da sociedade. Sabemos nada sobre as verdadeiras
causas das crises econômicas, mas compreendemos imediatamente que o
governo tem que fazer uma aterragem forçada30” (id. ibid,).
das sysykoll ist ... der kitt der gesellschaft, es suggeriert eine imaginäre gesellschaftliche und subjektive totalität
für die phantasie. während wir in der realen gesellschaft und bei unserem realen subjekt nur sehr beschränkten
30
56
Assim sendo, o SiSiCol e a cultura são intimamente ligados: “O SiSiCol é
uma viga da sociedade à medida que ele é um elemento fundamental do
interdiscurso” (id.ibid.). A presença dos símbolos coletivos nos enunciados dos
sujeitos falantes comprova freqüentemente como o indivíduo é envolvido no
interdiscurso social. O emprego dos símbolos, visto como “ideologemas”, remete o
analista à origem do interdiscurso, ou seja, aos discursos especiais (discursos
político, acadêmico, pedagógico, midiático, etc.) que fornecem as palavras-chave
para incrementar o interdiscurso e incluir toda a população nele.
As posições discursivas fortalecem-se ainda mais quando cadeias
inteiras de símbolos estão em oposição. Num exemplo ilustrativo, Link (1982: 12)
cita um conjunto de símbolos do movimento ecológico que se opõe à ideologia do
eterno progresso industrial: “vegetação, arvore, verde, planta, pedra vs. maquina,
concreto, fábrica, usina nuclear, foguete, etc.” Em seguida, o autor afirma que cada
indivíduo “nada no SiSiCol da sua cultura” (op. cit.: 13) e é interpelado (Althusser)
permanentemente por seus discursos elementares (por ex.: piadas, esporte,
carnaval) e institucionais (escola, igreja, mídias). O SiSiCol forma os sujeitos ao
fornecer-lhe fragmentos discursivos socialmente pré-selecionados e ao impor-lhes
as escolhas imaginárias entre os símbolos do bloco hegemônico (cf. Gramsci apud
Portelli, 1977): “Os indivíduos são obrigados a identificar-se [...] com símbolos
positivos ou negativos do SiSiCol. O sujeito formado assim, inicialmente, é um ‘nós’
[...] antes de tornar-se ‘eu’” (id. ibid.). Link acrescenta ainda alguns exemplos para
essas avaliações ideológicas e mostra como uma cultura cria seus limites através de
estereótipos dominantes e da ocupação de posições discursivas:
“Nós [os alemães] não somos ratos, nem parasitas, não vivemos no
submundo, não somos câncer ou veneno, nem estamos no off side
[impedido], nós não inundamos barragens, nem acendemos casas; aliás,
antes de tudo, nós não somos o caos. Em vez disso, nós todos formamos
um corpo saudável, uma fortaleza firme, uma barragem forte, um carro
limpo, etc. (id. ibid.)”
Os discursos, de maneira algum, representam processos inofensivos e
sem conseqüências, pois eles aumentam a disposição de realizar certas ações
(por
ex.:
ataques
contra
muçulmanos,
judeus,
índios,
mendigos,
pretos,
durchblick haben, fühlen wir uns dank der symbolischen sinnbildungsgitter in unserer kultur zuhause. wir wissen
nichts über krebs, aber wir verstehen sofort, inwiefern der terror krebs der gesellschaft ist . wir wissen nichts über
die wahren ursachen von wirtschaftskrisen, begreifen aber sofort, dass di eregierung notbremsen musste....
57
homossexuais ou membros de outras etnias, religiões ou minorias). O discurso,
portanto, deve ser vista como “uma maneira de falar estabelecida institucionalmente
que exerce o poder à medida que determina e apóia certas ações31” (Link, 1983: 60).
As estratégias e táticas na convivência com o SiSiCol, os tipos de sua aplicação
pragmática e sua força de coesa diante dos sujeitos de uma cultura, portanto, devem
representar um objeto principal da análise do discurso.
É lamentável que Foucault, na sua aversão justa contra a “alquimia da
semântica” delimitou suas considerações lingüísticas à análise dos atos de fala
(Foucault, 2002b). Desse modo, ele desprezou sempre as ferramentas da arte da
significação e mostrou sua antipatia à análise de símbolos; mesmo assim, não há de
negar que a ligação de dois ou mais discursos através de símbolos coletivos e a
totalização dos conteúdos ideológicos denotados neles representam um enorme
efeito de poder, cuja materialidade merece uma análise crítica:
“[Foucault] não levou em conta os efeitos de poder que derivam da
integração e totalização imaginárias, simbólicas e discursivas meramente
dos discursos especiais e ele subestimou seus efeito sobre a constituição
dos sujeitos” (Link, 1984: 111).
O poder do SiSiCol é tão forte que até os sujeitos que querem ocupar uma
posição alternativa têm que recorrer ao seu reservatório de símbolos coletivos. Não
há um poema, um conto ou um drama que não fosse ancorado, mais ou menos, no
simbolismo coletivo. De fato, é possível imaginar tudo isso como um ciclo de
reprodução que não volta apenas a seu ponto de partida, mas que modifica e alarga
continuamente o inventário de símbolos coletivos. Os símbolos coletivos, desse
modo, formam a matéria prima para produzir mitos cotidianos. Quando as pessoas
percebem acontecimentos reais, eles os percebem pela grade do sistema dos
símbolos coletivos. Assim sendo, pode-se concluir, enquanto as outras variações da
análise do discurso focalizam o contexto imediato de certas palavras para analisar
as modificações ou transposições do significado, a abordagem de Link é adequada
especialmente para objetivar o campo difuso das visões de mundo cotidianas.
31
[Diskurs ist] eine institutionell verfestigte Redeweise, insofern eine solche Redeweise schon Handeln bestimmt
und verfestigt und also auch schon Macht ausübt.
58
A dispersão discursiva torna-se compreensível nos diferentes ramos
discursivos que se compõem de fragmentos discursivos do mesmo sujeito em
diferentes níveis discursivos (ciência, política, mídia). Cada discurso é encaixado
historicamente e tem seu impacto em discursos contemporâneos e futuros.
Também surge, assim, a diferença principal entre a análise do discurso e
a análise do texto: a lingüística textual se delimita mais ou menos ao texto como tal e
a suas regularidades internas; em conexão com a análise do discurso, no entanto,
afirma-se que a análise da linguagem e a análise da sociedade (e das condições
sociais) devem ser coligadas.
Para Foucault, o sujeito falante é submetido às regras da prática
discursiva cujo funcionamento não depende da consciência dele. As regras da
formação discursiva determinam quando e em qual posição lhe for possível e
permitido
enunciar
alguma
coisa.
Esse
aprisionamento
discursivo
dos
enunciadores leva a pergunta se o sujeito dispusesse de certas opções expressivas
que envolvem decisões conscientes e individuais ou se cada escolha surgisse na
verdade de uma liberdade imaginária que reflete apenas um aspecto da apelação
ideológica e da dispersão do sujeito.
sugere um alargamento do conceito “do discurso asujeitado” de Foucault
e, desate modo, a busca de vestígios autoriais no sistema dos significados sociais.
Nessa abordagem, é de se pressupor que o sujeito enunciador adquire
experiências sociais através de enunciados. Isso significa que ele se comunica com
os outros ao usar expressões lingüísticas diante o horizonte das experiências
compartilhadas. Nisso, ele não emprega o material lingüístico como meros
instrumentos de um caixa de ferramentas, mas de uma maneira que produz novos
significados adequados à situação atual. Em outras palavras, experiências
anteriores são generalizadas através de experiências atuais e recebem através do
sujeito enunciador um significado que recorre ao presente social
Os enunciados, como expressões com significados próprios, são
relacionados ao sujeito
59
Retomando certas idéias de Gramsci (cf. Portelli, 1977), Luhmann
distingue entre o bloco formativo-histôrico e o bloco sócio-histórico. A saber, o
primeiro termo diz respeito à união das classes sociais sob o reinado da hegemonia;
o segundo refere-se à união entre as diversas áreas da prática e do conhecimento
de uma cultura.
Uma outra variante da AD encontra-se na abordagem semiótica de Jürgen
Link que analisa como “o sistema dos símbolos coletivos” (chamado “Syssykoll”)
funciona tanto em textos cotidianos (que Link chama de “literatura elementar”)
quanto nas obras literárias (que Link chama de “literatura alta”). O ponto crucial
desta abordagem encontra-se no termo “interdiscurso” que especifica, conforme
Link, o maior divisor comum entre os “discursos especiais” (por ex.: discurso jurídico,
médico, econômico, religioso etc.):
O produto da enunciação é um enunciado ou um texto, entendido por
Maingueneau (2000: 140) como “uma seqüência lingüística autônoma, oral ou
escrita, produzido por um ou vários enunciadores numa situação de comunicação
determinada”. A produção desse texto é limitada pelas múltiplas restrições impostas
pelos gêneros textuais disponíveis numa comunidade de fala. A função social desse
texto é, antes de tudo, exprimir lingüisticamente um pensamento a fim de torna-lo
receptível para outros. Uma condição prévia da produção de textos é o
conhecimento adquirido durante a socialização, um processo de aprendizagem que
envolve o indivíduo nos discursos sociais existentes no seu ambiente. A saber, o
autor de um enunciado segue, em cada situação, uma necessidade concreta e
dispõe de um motivo determinado. Para alcançar seus objetivos, ele usa seu
conhecimento com uma certa intenção. Nisso, ele considera às condições de
recepção e recorre às convenções lingüísticas e às operações mentais traduzidas.
As palavras não tem significado em si:
“É o texto que significa. Quando uma palavra significa é porque ela tem
textualidade, ou seja, porque a sua interpretação deriva de um discurso que
a sustenta, que a provê de realidade significativa.” (Orlandi, 2002: 52).
60
Os textos nunca representam apenas manifestações individuais, mas são também
sempre sociais. Eles contêm fragmentos de discursos sócio-históricos e supraindividuais Os textos podem ser associados a determinados ramais discursivos cujos
meandros percorrem os diferentes níveis e redes discursivos e que, na sua
totalidade, constituem o discurso de uma sociedade.
A originalidade do texto, então, é uma ficção. O texto sempre provém de
outros e mira para outros. Sendo exemplar de discurso, ele não tem uma superfície
plana, mas múltiplos planos significantes. Essa condição pluridimensional explica por
que qualquer texto é aberto a diferentes interpretações, dependendo das diferentes
posições de sujeito e das diferentes formações discursivas. Orlandi (1996:20) nos
remete para esse conceito quando constata que os elementos significantes não são
pré-determinados por propriedades intrínsecas:
“A linguagem é necessariamente opaca e incompleta, porque não há
sentido em si. A linguagem é um sistema de relações de sentidos onde, a
principio, todos os sentidos são possíveis, ao mesmo tempo em que sua
materialidade impede que o sentido seja qualquer um”.
2.2. A análise de discurso anglo-americana
Outra abordagem do discurso entende como análise do discurso a análise
da conversação. Nisso, é importante analisar sistematicamente as estruturas de
conversações reais e situações reais de comunicação. O objetivo, então, é, por
assim dizer, produzir uma gramática textual, i.e., revelar as regras que determinam a
produção de conversas. Essa versão da análise de discurso vale-se, muito, dos
conceitos e métodos da pragmática lingüística e de abordagens analíticos que foram
desenvolvidas pelos sociólogos que estudam o interacionismo simbólico. A palavra
“discurso”, nesse modelo, descreve uma unidade analítica abrangente que inclui
toda a situação complexa de uma comunicação concreta e que pode ser subdividida
em diferentes seqüências de atos de fala. Cada seqüência (por exemplo, uma
seqüência de saudação) constitui-se de formas lingüísticas ainda menores que, por
sua vez, mostram também certas regularidades. Um discurso, então, se caracteriza
pelo fato de constituir-se tipicamente de uma ordem determinada na sucessão dos
atos de fala, enquanto exclui a possibilidade de produzir outras ordens. Ele se
realiza, então, regularmente, mas, apesar da rigidez na estrutura dos elementos
61
essenciais, é possível que ele permita certa variabilidade na ordem de seqüências
secundárias ou facultativas. As regras se determinam, principalmente, pelo setting,
i.e., pelo contexto do discurso, por exemplo, no discurso pedagógico ou no discurso
judiciário. Deste modo, na sala de aula, geralmente não há lugar para discussões
espontâneas. Os professores distribuem o tempo de fala e a interação se constitui
tipicamente de um jogo de perguntas e respostas entre os professores e os alunos.
Um terceiro tipo de análise de discurso se encontra na chamada “análise
crítica de discurso” que, como o nome já sugere, se baseia numa visão crítica da
sociedade. Portanto, ela se importa com a questão de como certos conteúdos são
realizados lingüisticamente. Além disso, quais mecanismos são usados nisso? Será
que os conteúdos são expressos implícita ou explicitamente? Será que as formas
textuais predeterminam os textos futuros e, caso afirmativo, de que modo essa
influência ocorre? Um discurso concreto, nessa abordagem representa a soma dos
textos e conversas institucionalizados que são interpretados como ações
significativas, casos individuais de uma prática sócio-cultural, política e ideológica
que determina os sistemas e as estruturas de uma sociedade. O objeto de pesquisa,
portanto é a soma dos textos e conversas relevantes, num dado momento histórico,
para uma área social (por ex.: o discurso das mídias). O modelo pressupõe que os
textos sempre se referem também a diferentes períodos e espaços num passado
próximo ou mais remoto e a outros textos (intertextualidade). Em outras palavras: os
textos mantêm relações discursivas entre si que podem ser comprovadas
lingüisticamente. Conforme o analista de discurso Norman Fairclough (1995, Critical
Discourse Analysis: The Critical Study of Language. London, New York: Longman.
Pág.1), a análise de discurso inclui simultaneamente uma análise das relações de
poder:
“Power is conceptualized both in terms of asymmetries between
participants in discourse events, and in terms of unequal capacity to control how texts
are produced, distributed and consumed (and hence the shapes of texts) in particular
sociocultural contexts.”
“Assim, o que diferencia a Análise do Discurso de origem francesa da
Análise do Discurso anglo-saxã, ou comumente chamada de Americana, é
que está última considera a intenção dos sujeitos numa interação verbal
como um dos pilares que a sustenta, enquanto a Análise do Discurso
francesa não considera como determinante essa intenção do sujeito;
considera que esses sujeitos são condicionados por uma determinada
62
ideologia que predetermina o que poderão ou não dizer em determinadas
conjunturas histórico-sociais” (Mussalim, 2000: 113)
Percebe-se facilmente que a abordagem se aproxima dos estudos
culturais britânicos e pode ser vista como uma corrente programática da crítica da
ideologia orientada na vida cotidiana.
Evidentemente, falta ainda analisar e integrar as categorias centrais que
organizam o discurso, a saber, a geração dos objetos.
A conjuntura da palavra “discurso” torna essa localização necessária
Já que Foucault quer compreender o momento da dispersão com
adequadas regras de formação, ele deveria indicar quem são os atores desse “jogo
de regras”; mas esses são excluídos completamente, na aspiração de conceituar
regras discursivas anônimas que não dependem da consciência do falante.