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1. Introdução À primeira vista, parece que qualquer expedição que pesquisa o discurso cotidiano navegará, apenas, por águas amplamente conhecidas. Afinal, na vida préteórica do nosso cotidiano, usamos e interpretamos as palavras “discurso” e “cotidiano” naturalmente, i.e., com uma certa ingenuidade que se baseia em nosso senso comum, aquele tecido de significados “típicos”, “rotineiros”, “normais” ou “evidentes”, sem o qual nenhuma sociedade poderia existir. Logo, é de esperar-se que um pesquisador ansioso poderá decepcionar-se diante da improbabilidade de penetrar terra incógnita, mas de fato, seja qual for o rumo que sua exploração tomará, qualquer empreendimento científico que procure o conhecimento de um campo de ação corre perigo de encalhar, se uma confiança demasiada na familiaridade com a topologia produz a ilusão de que baste esquadrinhar os recantos do céu para encontrar as respostas certas. Pois, quem quer segurar o leme, enquanto perscruta o homem e suas manifestações, precisa - antes de tudo - de conceitos claros e um discernimento criterioso se quiser evitar que o primeiro contravento derrote-o do seu destino. Um olhar atento, então, descobre logo que o discurso cotidiano representa um objeto de pesquisa ainda a construir; pois mesmo que os conhecimentos partilhados do senso comum se impõem à consciência de maneira mais maciça, urgente e intensa e dão uma ordem aos objetos do mundo e às coordenadas da nossa vida em sociedade, não é de negar que o uso coloquial da expressão “discurso cotidiano” não permite esclarecer o estado ontológico desse acervo social ou determinar uma posição teórica que caracterize inequivocamente esse termochave para a construção da nossa realidade. Portanto, antes de desenvolver qualquer análise empírica que se ocupe de uma formação histórica concreta do discurso cotidiano, recomenda-se identificar quais são as dimensões e os limites desse objeto obscuro. Visto isso, é conveniente construir um modelo teórico que inclui as conexões principais e os elementos constitutivos do discurso cotidiano, mas não se baseia em evidências ou experiências cotidianas. Para fazer do “discurso cotidiano” um conceito cientificamente útil, i.e., adequado a um método empírico da análise do discurso, é preciso esclarecer, primeiramente, o que, na discussão acadêmica, significa “discurso” e o que se entende como “cotidiano”. Nisso, descobre-se logo 2 que ambas as palavras reluzem todas as cores e são carregadas com o peso de reflexões teóricas; são termos ambíguos que representam dois focos polêmicos de várias escolas contemporâneas das ciências humanas. 2. Texto, discourse e discours A palavra discurso tem sua origem etimológica no verbo latino discurrere que significa “correr para diferentes lugares”. Um discurso, neste sentido original, é uma fala ou uma conversa de certa extensão (não definida) cujo desenvolvimento espontâneo não é refreado previamente por uma intenção rígida (cf. Frank, 1989: 409). Com ou sem referência à sua história, hoje em dia o termo “discurso” amiúde encontra-se em diferentes afirmações, diferentes tipos de composições e diferentes vizinhanças semânticas. Mesmo que, muitas vezes, as diferentes acepções ficam implícitas, é evidente que se trata de um homônimo: a saber, o mesmo significante corresponde a vários significados. Essa afirmativa se comprova facilmente quando se observa o uso da palavra no discurso publicitário ou midiático, mas também quando se estuda seu emprego institucional ou científico. Decerto, o conceito do discurso está na moda e encontra-se amplamente divulgado nas ciências de linguagem, de literatura, das mídias, da história, nas ciências sociais e, até, em alguns campos discursivos das ciências naturais. Não é de admirar, então, que há vários modelos científicos de discurso. O antropólogo Malinowski, um dos pais da pragmática, não vê na língua um sistema abstrato de representações, mas uma maneira de agir. Para esse pesquisador (1935: 8), o discurso representa um segmento de enunciados conectados (“a connected stretch of utterances”) de um ou mais falantes com relações entre as diferentes partes que constituem a unidade do discurso. A conversa, nessa perspectiva, é um caso particular do discurso. O texto, conforme o autor, “é separado do seu contexto de ação e situação1” (op. cit.: 8). Em outras palavras, o texto escrito, gravado, citado ou lembrado é o que resta quando o discurso é isolado do seu contexto imediato de produção. Retomando a 1 “[Text] is divorced from its context of action and situation”. 3 argumentação de Malinowski, o lingüista alemão Ehlich (1979: 426) também defende a opinião de o texto ser, sobretudo, uma maneira de preservar um enunciado: “Refiro-me a um texto quando o enunciado de um falante for preservado além da situação direta do discurso. Isso exige sua fixação e gravação. [...] É possível imediatamente separar o texto [...] da sua situação enunciativa2”. No seu trabalho “discourse analysis”, o estruturalista americano Harris (1951), interpreta o discurso como uma unidade lingüística mais alta hierarquicamente que a oração ou a frase. A descrição formal desse objeto e a identificação dos seus constituintes dependem metodologicamente da análise das estruturas inferiores. É possível, assim, indicar duas regras iniciais para a geração de estruturas textuais3: 1. Texto O (+O) 2. O SN + SV. Todavia, essa tentativa inútil de escrever gramáticas textuais através de regras recursivas mostra, antes de tudo, que os estruturalistas costumam empregar a palavra discurso no sentido que Malikowsi e Ehlich conferem ao termo texto. Essa observação justifica, também, porque o título do trabalho de Harris foi traduzido para o alemão como “Textanalyse”, ou seja, “análise do texto”. Na perspectiva funcionalista, o estudo do discurso não se restringe à descrição das formas lingüísticas, mas deve focalizar suas funções no uso da língua. Os pesquisadores de orientação pragmática, por conseguinte, observam a interdependência entre o discurso e o contexto da vida social (Brown & Yule, 1983: 1; Fasold, 1970: 65). Logo, eles rejeitam o conceito estruturalista que afasta o texto do seu contexto: “O texto [... ] não representa um conceito muito útil ou interessante para compreender o comportamento lingüístico humano. É preciso ultrapassar a abordagem limitada que vê os textos como coleções de produções lingüísticas e que atribui estas produções a um indivíduo particular que profere orações ou até mesmo a pares de indivíduos que trocam unidades textuais estandardizadas, tais como perguntas e respostas, ordens e reconhecimentos, promessas e aceitações, e outras simples trocas conversacionais.4 (Mey, 1993: 184; apud Haberland, 1999: 913; a citação não aparece na edição revistada de Pragmatics; obs. HPW) “Ich spreche dann von einem Text, wenn die Äusserung eines Sprechers S über die unmittelbare Sprechsituation hinaus aufbewahrt wird. Dafür bedarf es ihrer Fixierung und Speicherung. [...] Für den Text ist [...] die Möglichkeit seinert Ablösung aus der Sprechsituatiuon unmittelbat gegeben .” 3 O = oração, SN = sintagma nominal; SV = sintagma verbal. 4 “The answer is simply that the text [...] is not a particularly helpful or interesting concept in understanding human speech behavior. What we need to do is to transcend the limited approach that sees texts as collections of 2 4 O conceito do discurso, ao contrário disso, é ligado intimamente à situação enunciativa e ao contexto social (Mey, 2001: 190): “Uma produção ‘ativa’ pressupõe naturalmente a existência de uma sociedade particular com seus valores, normas, regras e leis implícitos e explícitos e com todas as suas condições particulares de vida, sobretudo os pormenores econômicos, sociais, políticos e culturais. O conjunto destas circunstâncias é denominado freqüentemente com a expressão metafórica, ‘a fábrica da sociedade’, que é compreendida como um suporte de todas as estruturas societais5 e como o contexto necessário para toda a atividade humana. Na medida em que esta fábrica funciona e se torna visível (muitas vezes através da língua, mas também em outras atividades humanas), ela é apreendida pelo termo ‘discurso’. O discurso é interpretado, nessa perspectiva, como uma condição metapragmática que não se refere somente ao contexto imediatamente percebido [... ], mas ele inclui também as condições ocultas que governam tais situações do uso da língua [... ] O discurso é diferente do texto porque abrange mais do que apenas uma coleção de orações; o discurso é o que constitui o texto, e o que o liga ao contexto”6. A distinção de Mey sugere que é possível conceber uma semântica do texto, mas não faz sentido falar de uma pragmática do texto. A lingüística do texto, nesse sentido restrito, pode ocupar-se de fenômenos como a coerência ou a coesão textuais, mas, os aspectos pragmáticos da enunciação são negligenciados à medida que a indexicalidade inerente das expressões lingüísticas em geral e dos elementos dêiticos em particular são desconsideradas (cf. Haberland, 1999: 914). O texto, entendido como um discurso descontextualizado ou “congelado” (“frozen”), como diz Mey (id. ibid.), distingue´se nitidamente do discurso: enquanto o primeiro pode ser transportado pelo tempo e pelo espaço e ser consumido repetidamente ou ser analisado e reaproveitado, enquanto ele pode fundar uma tradição e conservar vestígios de saberes do passado, representa o language productions and ascribes these productions to single individual uttering sentences, or even to pairs of individuals exchanging standardized text units such as questions and answers, orders and acknowledgements, promises and acceptances, and other simple conversational repartees”. 5 “O autor distingue formação social e formação societal. Societal diz respeito a sociedade; não se opondo, portanto, diretamente a individual (como acontece na dicotomia social / individual).” (Mey, 2000: 17) 6 “But an ‘active’ production naturally presupposes the existence of a particular society, with its implicit and explicit values, norms, rules and laws, and with all its particular conditions of life: economic, social, political and cultural. These conditions are often referred to collectively by a metaphorical expression: the ‘fabric of society’, understood as the supporting element for all societal structures and the necessary context for all human activity. Inasmuch as this fabric operates and becomes visible (mostly through language, but also in other human activities), it is captured by the term ‘discourse’. Discourse is here taken as a metapragmatic condition which not only refers to the immediately perceived context [...], it also comprises the hidden conditions that govern such situations of language use. [...] Discourse is different from text in that it embodies more than just a collection of sentences; discourse is what makes the text, and what makes it context-bound. 5 segundo um acontecimento singular que se realiza apenas “aqui e agora”. Ora, um enunciado não pode ser repetido porque as condições de enunciação nunca são idênticas: “As propriedades implícitas da enunciação repercutem no próprio enunciado ao indexar as relações entre os usuários: isso quer dizer, elas revelam parte das circunstâncias em que o enunciado é produzido e recebido7” (Mey, 2001: 199). Todavia é de se pressupor que o texto e o discurso interagem e mantêm uma relação dialética. A saber, o acontecimento discursivo deixa, de um lado, seus vestígios no texto; aliás, o próprio texto é o vestígio do discurso. Logo, sem discurso não haverá texto. Do outro lado, é evidente que o discurso pode sobreviver apenas como texto; pois os acontecimentos discursivos do passado seriam perdidos para sempre se não tivessem deixado seus vestígios nos textos; o discurso, então, pressupõe o texto, ou seja, sem texto não haverá discurso (cf. Haberland, 1999: 915). O enfoque dos funcionalistas nas estratégias e intenções comunicativas é mais acentuado ainda na proposta dos analistas críticos do discurso, que interpretam os enunciados lingüísticos como fenômenos sociais e culturais (Fairclough, 1989: 23) e que determinam o discurso como uma parte constitutiva da sociedade. Nessa abordagem, o uso da linguagem é determinado pelas relações de poder na sociedade. Portanto, “quem quer descobrir para quais finalidades a língua serve tem que encontrar o usuário ou a usuária é determinar o que os leva a falar 8” (Mey, 2001: 316). O olhar crítico, então, não investiga apenas à situação imediata da enunciação, mas se interessa, sobretudo, pelos aspectos ideológicos das práticas discursivas e, nisso, particularmente, pela importância da emancipação social diante os discursos institucionais (Fairclough, 1989, 1992 e 1995; Van Dijk, 1985, 1997a e 1997b). Para Habermas (1981), que acredita na primazia da intersubjetividade soberana, o discurso é um evento comunicativo em que os sujeitos justificam suas reivindicações de prestígio ou poder. Foucault (2002b) e a escola francesa da análise do discurso, ao contrário disso, vêem na intersubjetividade, antes de todo, o produto dos discursos históricos e específicos de uma cultura ou sociedade. Eles se “These implicit properties of the utterance reflect on the utterance itself, by indexing its user relation: that is to say, they tell us something about how the utterance is produced, respectively received.” 8 “To find out what language is used for, you have to find the user and determine, what makes him or her speak”. 7 6 interessam, portanto, pela questão de como o desdobramento do discurso é influenciado pelas regulamentações sociais. Na sua perspectiva, o lugar do discurso se encontra num espaço vago entre o sistema normalizado da língua (langue) e seu uso meramente individual (parole): “Os discursos [...] não são combinações singulares de palavras no sentido da parole saussuriana, nem podem ser entendidos apenas no sentido das regras que são obrigatórias para um determinado sistema lingüístico. Eles não correspondem a primeira afirmação porque são eventos intersubjetivos e não se encaixam na segunda porque gozam de uma liberdade não regulamentada que não é desregrada, mas também não se enquadra no conceito da regra gramatical” (Frank, 1989: 409). 2.1. A “escola francesa” da análise do discurso As diferentes teorias, evidentemente, tentam impor seu próprio conjunto de fenômenos, formular seus próprios problemas, montar seu próprio quebra-cabeça e descobrir suas próprias regularidades. Entre as abordagens mais importantes, tem um modelo que concebe o discurso como uma entidade supra-individual, um fato social que representa sua própria realidade. Nesse quadro teórico, o discurso é uma ordem sui generis que não pode ser reduzido naturalmente às intenções dos indivíduos. Para Foucault e a escola francesa, o discurso é um meio de produção que tem determinados efeitos e cujos produtos discursivos mostram uma certa estruturação e se fundamentam em determinadas regras de formação. O discurso estrutura os enunciados e deste modo dá forma e continuidade aos processos sociais e às construções disciplinares. Cada formação discursiva representa um enquadramento virtual da produção de enunciados cujo horizonte foge da percepção pelo ator individual. O discurso, diz Jäger (1993 e 1999), é o fluxo do conhecimento ou da memória de conhecimentos pelo tempo. O saber representa o fundamento das ações humanas e, deste modo, da construção da nossa realidade. O universo, nessa visão, não se reflete na consciência humana, mas os homens lhe atribuem sentido e, deste modo, criam sua realidade. Conforme Jäger (2001), os discursos fornecem o conhecimento necessário e estabelecem as condições de aplicação na formação desta realidade. Em outras palavras: “nosso mundo significativo existe porque nós o fazemos significante ou porque ele recebeu dos nossos ancestrais ou vizinhos significados e convenções que continuam ser importantes para nos” (op. 7 cit.: 77). Sendo assim, o discurso representa um conjunto de fenômenos que provêm da produção social de sentido e que fundamentam a sociedade como tal. O discurso, nessa perspectiva, não representa um objeto, nem um espetáculo a observar, mas uma prática social que controla, seleciona, organiza e canaliza sistematicamente a enunciação e que, por sua vez, é regulada por práticas institucionais. As atividades que constituem essa prática são vivenciadas por sujeitos falantes cujas vozes abarcam o mundo com palavras. Essas vozes “são os instrumentos constitutivos sobre os quais se funda, em última instância, a orquestração da sociedade” (Mey, 2000: 27). O termo prática social, então, inclui todas as unidades de uma produção específica de conhecimentos, nomeadamente, as instituições relevantes, os métodos de coleção e de processamento de saberes, os autores e os falantes autorizados, as regras da formulação lingüística, nas modalidades oral e escrita, e os meios para o armazenamento, a divulgação e a recepção das informações. Para Foucault (2002a e 2002b), os objetos não têm uma existência prédiscursiva. Logo, é preciso conceber a prática discursiva como um instrumento da produção material que cria os objetos sócio-históricos como a loucura (Foucault, 2000a) ou o sexo (Foucault, 2001). O discurso não responde apenas às mudanças históricas e sociais, mas precede-os e, deste modo, constitui a realidade social. Ele proporciona a produção simbólica dos objetos e sua materialização em complexos atos sociais. Nisso, os enunciados recebem ou mudam seu sentido conforme o contexto sócio-histórico, político e discursivo, i.e., conforme o campo prático discursivo no qual eles se inscrevem. Cada indivíduo e cada comunidade interpretam o mundo de maneira diferente e isso não acontece porque os homens nasceram assim, mas porque diferentes modos de interpretação ou diferentes posições discursivas se desenvolveram historicamente como respostas a diferentes acontecimentos e como soluções para diferentes problemas (Jäger, 1996). Culturas, então, nada mais são do que grupos de seres humanos que atribuem, à realidade, mais ou menos os mesmos significados; e uma concreta realidade sócio-histórica é o resultado dos discursos nos quais os atores individuais e coletivos são metidos. 2.1.1. O construtivismo radical 8 Nessa concepção, o discurso é intimamente ligado à maneira pela qual os homens experimentam sua relação com as condições reais da vida. Essa relação é inevitavelmente imaginária, ou seja, de caráter ideológico. Sendo assim, a linguagem representa “o lugar privilegiado em que a ideologia se materializa” (Mussalim,200: 104). A ideologia, embora se apresente como legítima, destorce, dissimula, escurece, mistifica e manipula o modo de ser do mundo. Chaui (1980: 108) expressa uma definição ampla desse conceito: “A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer”. Eagleton (1991: 15) especifica 16 aspectos definitivos do termo e, em seguida, resume seu ponto de vista assim: “O que induz homens e mulheres a confundir-se, de tempos em tempos, com deuses ou vermes é a ideologia” (op.cit.: 12). Na teoria marxista (Marx, Karl & Engels, Friedrich, 1993), as ideologias têm existência material, ou seja, “devem ser estudadas não como idéias, mas como conjunto de práticas materiais que reproduzem as relações de produção” (Mussalim, 2000: 104). Para Althusser (1970), portanto, a ideologia naturaliza e universaliza crenças e valores que contribuem para manter as relações de dominação. Nisso, ela se materializa nos atos concretos dos indivíduos aos quais confere certa posição e identidade. A ideologia envolve a participação em práticas sociais e rituais no interior das instituições, os chamados “aparelhos ideológicos” que garantem, de um lado, a integração e coesão dos grupos sociais e perpetuam, do outro lado, a base econômica que as sustenta ao legitimar o poder político dominante. Desde o Novum Organum (1994) de Francis Bacon, a ideologia concebeuse, tradicionalmente, como fonte dos erros humanos e de uma visão destorcida da realidade. Na análise de discurso, no entanto, “a aparência social não é algo falso e errado, mas é o modo como o processo social aparece para a consciência direta dos homens” (Brandão, 2002: 21). Foucault e seus seguidores radicalizam o modelo neomarxista ao afirmar que a percepção dos objetos não é apenas uma questão do grau de distorção ou de disfarce da “verdade absoluta” sob a influência de interesses sociais inconfessos. Para eles, a própria idéia de um acesso à realidade “que não 9 seja distorcida por nenhum dispositivo discursivo ou conjunção com o poder é ideológica” (Zizek, 1996: 16). A ideologia, nessa abordagem, não gera uma imagem desfigurada de um mundo e de uma sociedade que existem fora do sujeito. Ao contrário, ela representa um elemento criativo que mantém uma função constitutiva para a produção da realidade individual e coletiva. A saber, a formação ideológica, como sistema de atitudes e representações, atravessa as formações discursivas e afeiçoa os efeitos de sentido que emergem das práticas sociais. Ora, se o mundo não é um dado, mas um constructum, o resultado da elaboração discursiva do mundo, é de se concluir que os próprios objetos não têm existência pré-discursiva, mas são produzidos nas práticas sociais. “Os fatos nunca falam por si, mas são levados sempre a falar por uma rede de mecanismos discursivos” (op.cit.:17). O mundo em que vivemos e que reconhecemos, então, é necessariamente construído por nós mesmos. Não há uma relação direta do homem com o mundo. Tudo com que lidamos são representações simbólicas. Portanto vale dizer: “Esse est percipi!” Ser significa ser percebido! Berkeley (1988: 32), ao explicar essa sentença, pressupõe explicitamente que a razão humana seja responsável pela construção ativa do nosso mundo de vida: “Todo o coro do céu e todo o mobiliário do mundo, em poucas palavras, todos os objetos que compõem a moldura influente do mundo, não têm nenhuma subsistência sem uma mente que percebe o conhece sua natureza”.9 Kant (1991: 294), também, defende a opinião de que “a natureza” seja a síntese da nossa experiência. Todo erro, diz ele, tem sua origem em nossa tendência de confundir nossa maneira de determinar, derivar ou classificar os conceitos com as condições “reais” dos objetos. Logo, a epistemologia, na visão kantiana, torna-se uma investigação dos modos que o intelecto humano usa para dar estrutura ao fluxo de experiências. A questão epistemológica de como o mundo entra na mente humana ou, inversamente, como e porque o ser humano interpreta o mundo e o subjuga às suas necessidades e concepções, persegue os pensadores desde os primórdios, sem que se chegue a uma solução definitiva. O sentido lexical da palavra grega aletheia, “All the choir of heaven and furniture of earth, in a word all those bodies which compose the mighty frame of the world, have not any subsistence without a mind, their being is to be perceived or known.” 9 10 por exemplo, já inclui duas explicações opostas do conhecimento humano. A saber, a verdade é compreendida por ela tanto como uma identidade entre um pensamento e a realidade quanto como uma concordância entre uma proposição e um regulamento convencional. Convém lembrar, neste contexto, da teoria platônica das idéias e do seu modelo competidor, da teoria aristotélica das categorias. Outrossim, a controvérsia entre os filósofos antigos quanto ao caráter instrumental ou representacional dos signos lingüísticos teve sua continuação na disputa medieval sobre a existência a priori dos conceitos gerais (universalia) que desuniu os nominalistas e os realistas. Na visão dos realistas, há uma ligação direta entre as palavras e as coisas: “vocês referuntur ad res significandas mediante conceptione intellectus”10 (Thomas, Summa theol, I, 13,1). Pressupõe-se, de um lado, que a existência dos objetos não dependa da apreensão por um sujeito que se refira a eles e, do outro lado, que o mundo seja mais ou menos assim como é percebido pelo homem. Os conceitos têm, então, uma motivação icônica, ou seja, exprimem um mapeamento mais ou menos perfeito da ordem natural do mundo. Nessa perspectiva, uma afirmação é verdadeira quando exprime um fato que existe “realmente”, ou nas palavras de Tomas de Aquino: “Veritas est adequatio intellectus et rei”11. Os nominalistas, ao contrário, partem da idéia de que apenas os fenômenos individuais tenham uma base “real”: Ockham (1999) afirma nesse sentido: “Nulla natura realis est communis”. Os conceitos universais são meras criações mentais (nomina), signos às quais corresponde nenhuma entidade real fora do pensamento humano. Nessa visão, são as práticas simbólicas que estruturam o mundo e, em última instância, dão um sentido aos seus objetos. No século XX, pensadores como Wittgenstein (1971/I: 451 seg.) retomam as idéias dos nominalistas quando observam que cada processo comunicativo se encaixa, a priori, no horizonte das pressuposições compartilhadas pelos sujeitos, ou seja, no senso comum. Husserl (1936) e Schütz (1932 e 1953) chamam esse horizonte intersubjetivo “o mundo da vida” (Lebenswelt). A língua e a cultura como elementos essenciais desse mundo da vida se apresentam como conditio sine qua non: elas têm que ser pressupostas desde sempre, pois representam o sistema referencial da própria compreensão. O acordo geral sobre a natureza do mundo da 10 11 “As palavras significam as coisas mediante os conceitos”. “A verdade é a correspondência exata entre o intelecto e a coisa”. 11 vida antecede qualquer possibilidade de divergências particulares. As situações mudam, mas os limites do mundo da vida são intransponíveis e formam um contexto inesgotável (cf. Habermas, 1981/ II: 198 – 202). Sendo assim, o mundo da vida transmite aos sujeitos a sensação de uma certeza inquestionável. Seu conhecimento, portanto, não pode ser problematizado, mas, quando muito, pode desmoronar. Essa idéia, como Habermas (1981/II: 205) observa, contém um paradoxo: o conhecimento do mundo da vida proporciona a impressão da certeza absoluta apenas enquanto os sujeitos não tomam conhecimento dele. Bourdieu (1977b) refere-se a essa noção com o conceito da doxa, que inevitavelmente se desintegra quando se torna objeto de controvérsia. Dando continuação à tradição nominalista, a escola francesa da análise do discurso, também, rompe com todos os modelos representativos e rejeita qualquer concepção especular do saber que considere o discurso como uma re-presentação da realidade. Foucault e seus seguidores partem da idéia de que os homens, ao nascer, não entrem num universo de “objetos reais”, mas num universo de discursos “que separem e, deste modo, criem o ego e o mundo, o sonho e a realidade, a ilusão e a verdade” (Jäger, 1993: 146). Os conceitos, então, são entidades “instáveis, variáveis e flexíveis que se desenvolvem no seio das interações individuais e sociais com o mundo e com os outros e por meio de mediações semióticas complexas” (Mondada & Dubois, 2003: 22). Nesse modelo teórico, o que constrói nosso mundo regular e relativamente estável são as decisões sobre o que vale como uma unidade real e sobre o que é aceito como uma relação entre os diferentes objetos “reais”: “As categorias e os objetos de discurso pelos quais os sujeitos compreendem o mundo não são nem preexistentes, nem dados, mas se elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos contextos” (op cit.: 17). À primeira vista, essa abordagem parece “idealista”, mas, de fato, Foucault nunca afirmou que o mundo não existiu antes de o discurso tê-lo criado. Aliás, para sua abordagem é essencial que as práticas discursivas e não discursivas são intimamente ligadas em cada contexto sócio-histórico. Orlandi (1996: 27), também, destaca a construção discursiva do referente: “O social para a AD [análise de discurso] não é correlato, ele é constitutivo. Isto é, não há uma correlação entre a estrutura da língua e a da sociedade, pois o que há é uma construção conjunta do social e do lingüístico. Melhor 12 ainda, define-se o discurso como um objeto social cuja especificidade está em que sua materialidade é lingüística” (Orlandi, 1996: 27). Visto isso, o espaço discursivo não representa uma dimensão do social, mas é idêntico com o social. Não há uma vida social fora do discurso. Tanto o saber da razão humana quanto o mundo da experiência racional são produtos da construção cognitiva. Uma vez estabelecida o organismo cognitivo vivencia esta estrutura como “a realidade”. Como ela é criada quase involuntariamente, essa realidade parece como um mundo independente, um universo que tem existência autônoma e que obedece a leis próprias. Todavia, as conexões entre os conceitos não dependem da sua existência “real”, mas surgem apenas no ato de raciocinar. De fato, a criatividade do pensamento se delimita a associar e estruturar as impressões e as idéias que os sentidos e a experiência fornecem e não alcança nada do que se encontra além dessa faculdade. O conhecimento do homem representa, necessariamente, uma perspectiva (histórica) do mundo, produzida pelas práticas e pelos hábitos sociais. Hume (1957: 47) comenta a importância que a ilusão de conhecer causas e efeitos representa para nossa vida cotidiana: “Toda a experiência se tornaria inútil e não poderia conduzir a nenhuma conseqüência ou conclusão se houvesse uma suspeita mínima de que o decorrer da natureza pudesse mudar e de que o passado não representasse uma regra para o futuro”. E ele deixa claro que as atividades humanas para compreender esse “decorrer da natureza” não produzem uma imagem verdadeira do mundo, mas uma estrutura implícita que determina, a priori, a experiência humana e os princípios da interpretação dos fenômenos (op. cit.: passim). Giambattista Vico (1988), também, assume essa perspectiva quando afirma verum ipsum factum, a verdade e o mesmo como o feito12. Ora, a interpretação sempre se dá de algum lugar da história e da sociedade. Fazemos raciocínios e servimos-nos de determinadas operações para abrirmos os caminhos que conduzem à realização dos nossos objetivos. Nisso, nunca nos encontramos fora das representações simbólicas da nossa cultura e sociedade. “As categorias conforme as quais classificamos a natureza não se encontram na natureza, elas 12 Etimologicamente, a palavra fato tem sua origem no verbo facere 13 surgem apenas através da nossa interação com a natureza 13” (Bickerton, 1990:53). Portanto, não é a realidade que se reflete na consciência, mas a consciência que se reflete na realidade. A ideologia, então, surge num processo de representação em que a subjetividade imaginária e a relação simbólica do homem com a realidade são entretecidas inseparavelmente: “Seja que for, o que escolhemos como elementos básicos, tijolos ou elementos euclídicos, eles determinam os nossos limites. Contudo, experimentamos esses limites, pó assim dizer, sempre pelo ponto de vista ‘de dentro’, pela perspectiva dos tijolos ou pela perspectiva dos elementos euclídicos. Os limites do mundo nos quais nossos empreendimentos fracassam estão além do nosso horizonte. O que vivemos e experimentamos, reconhecemos e sabemos se compõe, necessariamente, dos nossos próprios elementos e pode ser explicado, apenas, pela nossa maneira de construir. (Glasersfeld, 1985: 35). “O mundo é discursivo”, diz Jäger (2001), e, conforme o mesmo autor, não há como fugir disso: “Um objeto a qual eu não posso atribuir um significado não é um objeto para mim; ora, ele é completamente difuso para mim, invisível ou até inexistente; eu nem consigo vê-lo porque não me dou conta dele. Eu não vejo o pássaro que o guarda-florestal está vendo. Talvez eu percebo uma mancha vermelha. E, de fato, isso é o significado dessa mancha vermelha, que sou capaz de atribui-la o significado de uma mancha vermelha. A questão se ela representa uma flor, um pássaro ou um tufo de cabelo... não é percebível para mim, ela não é dada, ela é fora do meu alcance” (op. cit.: 77). Sendo assim, é pelo discurso que melhor se compreende a relação entre a linguagem, o pensamento e o mundo. Como, funciona, então, a negociação do sentido no discurso? Para lingüistas isso deve ser uma questão fundamental, mas surpreendentemente, não foi bem assim, pois como se sabe, as principais tentativas de responder a pergunta provêm de filósofos (Austin 1962, Grice 1975, Searle 1969) e sociólogos (Sacks, Schlegloff and Jefferson 1974, Schlegloff 1968 e Schlegloff & Sacks 1973) que se ocuparam com o problema de como os participantes coordenam o conteúdo e o timing durante a conversação. Um olhar breve para a origem da lingüística moderna explica esse déficit histórico. 2.1.2. O estruturalismo e o pós-estruturalismo “The categories, into which we divide nature are not in nature, they emerge solely through the interaction between nature and ourselves.” 13 14 A concentração saussuriana na língua enquanto sistema fechado de signos permitiu a análise das relações entre significante e significado sem ter motivo de estabelecer qualquer ligação entre o significado e o referente. “Influências externas, geradores de irregularidades, não afetam o sistema por não serem consideradas como parte da estrutura... A língua não é apreendida na sua relação com o mundo, mas na estrutura interna de um sistema fechado sobre si mesmo” (Mussalim, 2000: 112). Uma das formulas mágicas que os estruturalistas clássicos tiraram do Cours de Saussure diz que a língua não é uma substância, mas uma forma. Nesse modelo, a língua não alia os conceito à realidade, mas irmana, arbitrariamente, um significado a um significante. Os princípios dessa união são universais e, teoricamente, podem reivindicar validade para todas as disciplinas científicas. Assim sendo, o interesse dos estruturalistas destina-se às possibilidades combinatórias dessas duas dimensões do signo. Lévi-Strauss (1974), por exemplo, tenta descobrir as redes estruturais nas diferentes organizações do parentesco. O significado de um signo social, diz o autor, depende unicamente das relações que esse signo mantém com os outros elementos estruturais. Desse modo, o processo de significação se reduz a um mero jogo de diferenças. O lado material ou somático do signo, o referente é excluído como irrelevante. A estrutura representa um espaço topológico com um centro fixo e posições definidas cuja combinação fornece critérios para uma ordem estrutural. O sentido relacional dessa ordem antecede às ocupações possíveis da rede estrutural com variáveis reais ou fictícios. Assim sendo, é possível analisar todos os níveis da estrutura lingüística como o mesmo aparelho analítico apesar das diferenças entre a morfologia, a sintaxe e a semântica. No entanto, o sentido relacional se baseia numa concepção do signo exclusivamente “opositiva, relativa, negativa”: “[Os significados] são puramente diferenciais, definidos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não são” (Saussure, 1999: 136). Com essa separação da língua é da fala, separa-se o que é geral e social do que é incidental e individual. Exclui-se, também, o sujeito falante e todas as suas atividades associadas ao exercício da linguagem. Como a descrição dos diferentes níveis da língua é talhada sem referência alguma ao uso efetivo que dela 15 é feito pelos locutores, exclui-se completamente a linguagem como atividade. No seu estudo seminal sobre a noção da dêixis, Lakhud (1979: 96) resume a teoria saussuriana assim: “Saussure supõe que todos os fenômenos emergindo no momento da enunciação são uma conseqüência segunda da mera utilização da língua, que a tarefa do lingüista pode ser reduzida à descrição desta última em termos de puros valores, sistema semiológico fechado de entidades binárias, cuja arquitetura corresponde a uma combinatória entre unidades do mesmo nível. A remissão ao sujeito e à situação, a dimensão referencial, em suma todos os fatores pelos quais a linguagem se faz mediadora ‘entre o homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmitindo a informação, comunicando a experiência, impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando, coagindo’14, todos esses fatores, portanto, não fariam parte desse ‘tesouro’ depositado nos ‘cérebros’ dos indivíduos de uma coletividade. Eles surgem ao nível do realizado como meras incidências da própria realização, incidências que os procedimentos do lingüista devem neutralizar a fim de reconstruir a estrutura das relações passivas entre significantes e significados, único componente coletivo da linguagem para Saussure” Saussure e as diferentes correntes do neo ou pós-estruturalismo têm em comum que eles excluem o referente da tríade semiótica ao tratar-lo como um elemento que não influência diretamente à produção de signos. Embora o referente seja submetido ao processo semiótico, observa-se que ele tem apenas a função de um vácuo a ser preenchido lingüisticamente. Ele representa, então, um conceito construído a posterior. Seguindo essa lógica, o sujeito pós-estruturalista, também, é um produto puramente semiótico um ser preso na língua e pela língua que não tem origem nem unidade. Observa-se, também, que a nova geração não se interessa tanto pelas relações entre os elementos do mesmo nível estrutural quanto pelas relações entre os elementos estruturais de níveis diferentes. Além do mais, descobre-se o discurso como uma terceira ordem que é essencialmente diferente da langue e da parole. A saber, Lévi-Strauss afirma, num estudo antropológico (1974: 232), que o mito, representa um acontecimento que como forma lingüística, pertence à langue e, como narração, se refere à parole. Conforme o autor, o mito não representa uma sucessão fechada de signos individuais, mas uma seqüência de proposições oracionais. A linearidade da sucessão de orações confere a cada elemento sígnico um índice de tempo. Logo, é impossível tira-lo incólume do seu contexto específico. Conseqüentemente, é preciso estabelecer um nível intermediário entre o sistema 14 Beneviste, La forme et lê sens dans lê langage. In: Lê Langage. 1967. 16 abstrato da langue e a realização individual da parole. Para Lévi-Strauss, é claro que “os mitos dizem respeito ao discurso” (1973: 230), “Il[s] relève[nt] du discours” e ele conclui que o mito constitui um tipo particular do discurso (op. cit.: 232 seg.): 1. Como toda entidade lingüística, o mito compõe-se de unidades constitutivas. 2. Essas unidades constitutivas implicam a presença daquelas unidades que interferem normalmente na estrutura da língua; a saber, os fonemas, os morfemas e os semantemas. Mas elas [as unidades constitutivas] representam para essas últimas [os semantemas], o que semantemas representam par os morfemas e o que os morfemas representam para os fonemas. Cada forma distingue-se daquela que a procede por um grau maior de complexidade. Por esta razão, chamaremos os elementos que se referem ao próprio mito (e que são os mais complexos de todos) de grandes unidades constitutivas, ou seja, mitemes.15 Neste trecho, surge primeiramente a idéia do que se chama, desde então, a “linguistique du discours”. Barthes (1966: 3) é que descreve lucidamente as características desse novo ramo do saber: Sabe-se que a lingüística termina na frase: esta é a última unidade da qual ela acredita ter o direito de ocupar-se; [...] Contudo, é evidente que o próprio discurso (como conjunto de frases) é organizado e, devido a esta organização, ele aparece como uma mensagem de outra língua que é superior a dos lingüistas. O discurso tem suas unidades, suas regras, sua ’gramática’: o discurso ao transcender a oração e, ainda assim, composto por orações apenas, deve ser, evidentemente, o objeto de uma segunda lingüística. [...] se for preciso levantar uma hipótese de trabalho numa análise cuja tarefa é imensa e cujo material é infinito, a mais razoavel seria postular uma relação de homologia entre a oração e o discurso, na medida em que a mesma organização formal rege provavelmente todos os sistemas semióticos, seja qual forem as suas substâncias e as suas dimensões: o discurso seria uma oração grande (cujas unidades não seriam necessariamente as orações) igualmente como a oração através de certas especificações, representaria um discurso pequeno. 16 1o comme tout être linguistique, le mythe est formé d'unités constitutives; 2o ces unités constitutives impliquent la présence de celles [unités] qui interviennent normalement dans la structure de la langue, à savoir les phonèmes, les morphèmes et les semantèmes. Mais elles sont, par rapport à ces derniers comme ils sont eux-mêmes par rapport aux morphèmes, et ceux-ci par rapport aux phonèmes. Chaque forme diffère de celle qui procède par un plus haut degré de complexité. Pour cette raison, nous appellerons les éléments qui relèvent en propre du mythe (et qui sont les plus complexes de tous): grosses unités constitutives [soit mythèmes] » (Leví-Strauss, 1974 : 232 seg.). 16 On le sait, la linguistique s`arrête à la phrase: c`est la dernière unité dont elle estime avoir le droit de s`occuper; [...] Et pourtant il est évident que le discours lui-même (comme ensemble des phrases) est organisé et que par cette organisation il apparaît comme le message d`une autre langue, supérieure à la langue des linguistes. Le discours a ses unités, ces règles, sa ‘grammaire’: au-delà de la phrase et quoique composé uniquement des phrases, le discours doit être naturellement l`objet d`une seconde linguistique. [...] s`il faut donner une hypothèse de travail à une analyse dont la tâche est immense et les matériaux infinis, le plus raisonnable est de postuleur un rapport homologique entre la phrase et le discours, dans la mesure où une même organisation formelle règle vraisemblablement tous les systèmes sémiotiques, quelles qu`en soient les substances et les dimensions: le discours serait une grande phrase (dont les unités ne sauraient être nécessairement des phrases), tout comme la phrase, moyennant certaines spécifications, est un petit discours. 15 17 Ao contrário do que seu nome sugere, o pós-estruturalismo não se propôs a superar o conceito da estrutura, mas radicalizou-o ao pensar a estrutura como sendo incompleta e instável. Dentro dessa estrutura aberta e mutável vale o princípio da entropia. Não há mais um centro fixo e uma periferia ao redor dele. A estrutura não se desenvolve mais coerentemente a partir do seu núcleo, mas continua fiar seu tecido a partir dos seus elementos (autopoeisis). Sendo assim, é impossível predizer onde e como as mudanças desta estrutura descentralizada ocorrerão e qual direção elas tomarão. A epistemiologia kantiana se ocupa da descoberta das categorias universais (por ex.: a substância ou a causalidade) que estruturam, a priori, qualquer conhecimento humano. Os pós-estruturalistas mantêm essa idéia da imposição de uma ordem implícita ao pensamento humano, mas eles rejeitam qualquer explicação que interprete as condições do conhecimento como transcendentes. No seu ponto de vista, o pensamento humano se desdobra no contexto de uma ordem de símbolos que estrutura o mundo e proporciona a experiência dos fenômenos aos membros de uma comunidade lingüística ou cultural. Para Foucault (2002b: 145), os esquemas mentais são relativos e se baseiam sempre num “A Priori histórico”. Em outras palavras, no seu ponto de vista, as categorias que predeterminam a experiência dos fenômenos fazem parte do mesmo mundo histórico-cultural no qual elas encontram os objetos em sua forma específica. “Não há providência pré-discursiva que disponha [o mundo] a nosso favor. Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio da sua regularidade. (Foucault, 2000: 53) Nos seus estudos “As palavras e as coisas” (2002a) e “A arqueologia do saber” (2002b), o autor tenta indicar as normas implícitas pelas quais as disciplinas científicas, numa dada época, podem gerar conhecimentos. O autor demonstra a existência desses princípios através de numerosos exemplos e dá ao conjunto dessas regras a denominação episteme. O discurso, conforme o autor, constitui-se dentro de um desses códigos macro-estruturais que organizam invisivelmente todo o espaço social e discursivo de uma época e/ou cultura. Assim sendo, a episteme é o princípio fundamental pelo qual uma sociedade configura a ordem do discurso: 18 “A episteme não é uma forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas” (Foucault, 2002b: 217). Ao ocupar-se da arqueologia do saber, Foucault (2002b) vê, na episteme, um “inconsciente positivo do conhecimento” (cf. Frank, 1989) que se esquiva da consciência do pesquisador, mas, apesar disso, faz parte do discurso científico. A episteme, ainda como conjunto de relações entre ciências, figuras epistemológicas, positividades e práticas discursivas, permite compreender o jogo das coações e das limitações que, em um momento determinado, se impõem ao discurso” (id. ibid.). A relação entre uma episteme e as formações discursivas de uma época ou cultura é dialética, pois, de um lado, as estruturas epistémicas representam uma condição prévia da ordem do discurso; do outro lado, são os discursos e as formações discursivas que constituem as macro-estruturas de toda episteme. Seguindo essa linha de argumentação, Jäger (1996) afirma: “Quando o discurso se muda, o objeto não muda apenas seu significado, mas o próprio objeto quase se transforma num outro objeto; ele perde sua identidade”. Logo, quando os homens abandonam um discurso, é de se esperar que a área correspondente da realidade torna-se insignificante literalmente ou que lhe são atribuídos novos significados. Isso significa que os sentidos são historicamente construídos. Não existe, por conseguinte, um discurso homogêneo17, abrangente e fechado, nem um significado estável e imutável. Laclau (1983 apud Kaltenecker, s.d.), ao esclarecer essa conexão entre materialidade, discurso e significado, afirma: “Quando desfiro chutes num objeto esférico na rua ou quando jogo com uma bola num jogo de futebol, o fato físico é sempre o mesmo, mas seu sentido é completamente diferente, pois o objeto se torna apenas um futebol ao estabelecer um sistema de relações com outros objetos; e essas relações não são predeterminadas pela mera materialidade do objeto, mas socialmente construídas”. De certo, a dimensão ideológica da representação simbólica e do discurso está ligada sempre ao campo das práticas sociais nas quais se manifestam perspectivas Quanto à heterogeneidade discursiva remetemos o leitor a Authier-Revuz, 1990; Brait, 1997; Bakhtin, 1928/1997; Barros & Fiorin, 1994; Brandão, 2002: 69 – 80; Ducrot, 1984; Manguueneau, 1997; Orlandi, 2001b: 109 – 127. 17 19 e pontos de vista muito diferentes. Afinal, prosseguindo a argumentação de Laclau (id. ibid.), é bem possível que uma lata vazia seja interpretada como um futebol e o jogo no beco de um subúrbio como final de um campeonato. 2.1.3. A dispersão da razão Para Foucault (2002b: 98), o enunciado representa um acontecimento sócio-interativo que não pode ser confundido com os termos “proposição”, “oração” ou “ato de fala”. Conseqüentemente, a relação entre o significante e o significado, entre a proposição e o referente e entre a ilocução e o sentido não correspondem à relação entre um enunciado e o que ele exprime. A função do enunciado distinguese por características próprias, pois o enunciado não é em si mesmo uma unidade, mas ”uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles ‘fazem sentido’ ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita)” (op. cit.: 99). O enunciado, então, não funciona como um elemento fora do discurso, mas apenas como uma componente de uma formação discursiva. Ele é, então, “uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que aparecem, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (id. ibid.). No âmbito do método arqueológico de Foucault, as seguintes características do enunciado são regularmente mencionadas: i) O enunciado não se refere ao referente, mas é relacionado com ele por uma atividade sócio-interativa (op. cit.: 129 – 133). ii) O sujeito que produz uma cadeia de signos e se torna, assim, o seu autor não é idêntico com o sujeito do enunciado (op. cit: 134), pois este não é ligado a pessoa de um autor nem às intenções dele. iii) Todo enunciado encontra-se num campo associado (op. cit.: 143), i.e., num certo contexto com enunciados co-existentes aos quais ele se reporta. Estes, por sua vez, contribuem no mesmo assunto e especificam ou modificam certos aspectos dele. iv) O enunciado é associado a um portador, um lugar e um momento histórico e, portanto, tem existência material (op. cit.: 147). Logo, é de 20 se esperar que uma alteração das condições materiais muda a identidade do enunciado. Baseando-se nesse conceito, Foucault define o discurso como um conjunto de enunciados que pertencem ao mesmo sistema de formação. As regras que mantêm os enunciados juntos e que determinam a sua “dispersão real” constituem uma “formação discursiva” (op. cit.: 170). Conforme Mussalim (2000: 125), a formação discursiva representa “o lugar onde se articulam o discurso e a ideologia”. A formação discursiva, então, representa um mecanismo de controle que determina “o que pode/deve ser dito a partir de um determinado lugar social” (id. ibid.). Em outras palavras: ela representa aquela dimensão da sociedade na qual uma dispersão de enunciados pode ser descrita como um campo delimitado e mais ou menos estável que inclui as verdades possíveis dentro de um complexo de instituições e práticas sociais. Nessa perspectiva, nenhum texto é inocente, pois não deve seu sentido às suas características lingüísticas objetivas e inerentes, mas ao fato de que foi produzido no entrecruzamento das diferentes formações discursivas que se distinguem por suas ideologias particulares e seus modos específicos de controlar o poder. Destarte, as regras de formação discursiva se caracterizam como: “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa (Foucault, 2002b: 136) ” O que importa para Foucault (1995: 136), numa prática discursiva, é a existência objetiva e material de certas regras às quais o sujeito obedece quando quer participar no discurso. Assim sendo, uma formação discursiva não pode mais ser interpretada como um espaço fechado “com elementos ligados entre si por um princípio de unidade” (Mussalim, 2000: 119), pois ela é sempre invadida por elementos exteriores e/ou pré-construídos que são incorporados “num esforço constante de fechamento de suas fronteiras em busca da preservação de sua identidade” (Brandão, 1998: 39). Foucault, conseqüentemente, concebe a formação discursiva como uma dispersão: “No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos as escolhas temáticas, se 21 puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma forma discursiva” (Foucault, 2002b: 43). E as regras de uma formação discursiva são definidas como “as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas), [ou seja], condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição discursiva” (op. cit.: 43 seg.). Assim sendo, as condições existenciais do discurso resultam de quatro tipos de regularidades: i) da formação discursiva dos objetos, i.e., do surgimento, da delimitação, da transformação e da distribuição dos objetos num espaço discursivo (Foucault, 2002b: 46 – 56); ii) das modalidades enunciativas cujas regras descrevem os lugares institucionais e determinam a legitimidade e a posição discursiva do enunciador (op.cit.: 57 – 62); iii) da arquitetura dos conceitos que define a sucessão, a co-existência e a re-formulação dos termos-chave de um discurso (op. cit.: 63 – 70); iv) das estratégias discursivas que determinam a distribuição e a concatenação históricas dos temas e das teorias e que sempre refletem, também, a integração do discurso em práticas nãodiscursivas e instituições (op. cit.: 71 – 77). A figura 1 na página seguinte mostra como o sistema dinâmico das regras de formação determina a prática discursiva, se materializa na produção enunciativa e estrutura a percepção da realidade. Ora, é preciso refletir um pouco melhor sobre os fatores que geram as condições existenciais do discurso. Quanto ao sistema de emergência dos objetos, Foucault afirma que os objetos discursivos não têm uma existência pré-discursiva, pois o sujeito não transforma um fenômeno dado em objeto da sua subjetividade, mas constrói o objeto ao constituirse como sujeito. As características dos objetos discursivos, portanto, são determinadas, em última instância, pelas regras de formação que determinam o que pode ser dito ou não nas diferentes atividades discursivas. “Essas regras estabelecem as condições – históricas, de parentesco com outros objetos – e as relações – de semelhança, de vizinhança, de afastamento, de diferença e de transformação – que definem o aparecimento dos objetos” (Mascia, 2003: 32). 22 Figura 1: O sistema dinâmico de regras ou formações discursivas que fundamenta a produção enunciativa, se materializar nos enunciados e estrutura a percepção da realidade (prática discursiva) (fonte: Diaz-Bone, 1999: 125) O discurso enquanto sistema de regras que funciona como um inconsciente positivo para a fala e o pensamento Nível dos enunciados Relações entre os objetos Arquitetura de conceitos Nível das regras de formação Formação dos objetos Formação dos conceitos Construção das posições subjetivas Opções estratégicas Sujeitos autorizados Interesses teóricos, intenções Relações discursivas Relações secundárias ou reflexivas “Realidade” construída lingüisticamente e percebida coletivamente Ambiente do discurso: Relações primárias (“base”) e outros discursos Relações primárias Outro discurso Outro discurso 23 Com respeito aos modos diversos da enunciação, é evidente que seu aparecimento e sua distribuição variam conforme o momento histórico e o lugar social. Todavia, Foucault (2002b) mostra claramente que o regime das enunciações, de maneira alguma, está relacionado à unidade de um sujeito; ao contrário, a análise das modalidades enunciativas revela a subjugação do sujeito às forças institucionais e sua dispersão no campo discursivo (Foucault: 2002b: 61). Os discursos produzem e categorizam seus sujeitos e objetos através dos enunciados e criam, simultaneamente, a ilusão da autoria e da continuidade histórica (cf. Robin, 1977: 25 e 41). A interpelação ideológica que permite a constituição e a identificação do sujeito tem o efeito de que o sujeito se considere “a origem do que diz” e “a fonte exclusiva do sentido do seu discurso” (Brandão, 2002: 65). “O sujeito se ilude duplamente: a) por ‘esquecer-se’ de que ele mesmo é assujeitado pela formação discursiva em que está inserido ao enunciar (esquecimento n. 1); b) por crer que tem plena consciência do que diz e que por isso pode controlar os sentidos de seu discurso (esquecimento n. 2)” (Mussalim, 2000: 135). As forças da ideologia produzem o sujeito cartesiano, consciente e capaz de agir no mundo social como agente formador, mas esse sujeito vive, de fato, na ilusão (necessária) de que “o discurso reflete o conhecimento objetivo que tem da realidade” (Brandão, 2002: 66). A análise de discurso, ao descrever as condições da produção discursiva, tem como objetivo desnaturalizar esse efeito ideológico. Para Foucault e dos seus seguidores, o sujeito é um efeito da linguagem. Ele é “atravessado pelo inconsciente, múltiplo, esfacelado, cindido, clivado, marcado pela incompletude” (Mascia, 2003: 12). Assim sendo, ele não é soberano, “não lhe é dado controlar o outro nem os efeitos de sentido de seu dizer” (id. ibid.); pois, como diz Mussalim (2000: 131), “o que é e o que não é possível de ser enunciado por um sujeito já está demarcado pela própria formação discursiva na qual está inserido”. Conseqüentemente, uma teoria de sujeito condizente com uma concepção do texto como “produto de um trabalho ideológico não-consciente” não pode interpretar o sujeito do discurso “como aquele que decide sobre os sentidos e as possibilidades enunciativas do próprio discurso, mas como aquele que ocupa um lugar social e a partir dele enuncia, sempre inserido no processo histórico que lhe permite determinadas inserções e não outras” (Mussalim, 2000: 110). 24 “Em outras palavras, o sujeito não é livre para dizer o que quer, mas é levado, sem que tenha consciência disso [...], a ocupar seu lugar em determinada formação social e enunciar o que lhe é possível a partir do lugar que ocupa” (id. ibid.) O sujeito, então, constitui-se apenas através dos objetos que cria e, desse modo, passa a representar uma unidade funcional de um campo anônimo do discurso. A configuração desse campo determina as posições que os sujeitos podem ocupar. O status de uma pessoa, a legitimidade do seu enunciado e o lugar institucionalizado de onde ela fala determinam o valor, o efeito e a existência de um enunciado. Conseqüentemente, é preciso perguntar: “Quem fala? Quem, no conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas razões para ter esta espécie de linguagem? Quem é seu titular? Quem recebe dela sua singularidade, seus encantos, e de quem, em troca, recebe, se não a sua garantia, pelo menos a presunção de que é verdadeira? Qual é o status dos indivíduos que têm – e apenas eles – o direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso? (Foucault, 2002b: 57) Quanto à formação dos conceitos, vale dizer, primeiramente, que eles não são “o resultado, depositado na história e sedimentado na espessura dos hábitos coletivos, de operações efetuadas pelos indivíduos” (Foucault, 2002b: 70). As regras do surgimento, da dispersão e da combinação dos conceitos não têm seu lugar na consciência dos falantes, mas no próprio discurso; “elas se impõem, por conseguinte, segundo um tipo de anonimato uniforme, a todos os indivíduos que tentam falar nesse campo discursivo” (op.cit.: 70). Todo discurso se distingue, então, pela relação entre seus enunciados e os “esquemas (de seriação, de agrupamentos simultâneos, de modificação linear ou recíproca)” que determinam sua arquitetura conceitual (op. cit.: 66 seg.). “Esses esquemas permitem descrever – não as leis de construção interna dos conceitos, não a sua gênese progressiva e individual no espírito de um homem – mas sua dispersão anônima através de textos, livros e obras; dispersão que caracteriza um tipo de discurso e que define, entre os conceitos, formas de dedução, de derivação, de coerência, e também de incompatibilidade, de entrecruzamento, de substituição, de exclusão, de alteração recíproca, de deslocamento, etc. Tal análise refere-se, pois, em um nível de certa forma pré-conceitual, ao campo em que os conceitos podem co-existir e às regras às quais esse campo está submetido”. 25 A dispersão anônima dos conceitos torna a unidade da obra problemática, pois, a noção do texto não se baseia mais na figura de um autor, mas na idéia da colaboração dos textos anteriores. A noção da intertextualidade explica, no nível micro-estrutural, a presença implícita ou explícita de fragmentos ou vestígios de outros textos, outros sujeitos e outros discursos que mantêm, entre si, uma relação de confronto ou aliança. O que o intertexto é para o texto é, no domínio macro-estrutural, o interdiscurso para o discurso, a saber, a incorporação de elementos de um discurso em outro: “[O discurso] é atravessado por muitas vozes dentre as quais se encontram aquelas que veiculam o poder e aquelas que promovem resistências, vozes essas que se cruzam, se excluem, mas também se alimentam” (Mascia, 2003: 20). Se todo discurso define sua identidade em relação aos outros, é de se pressupor que exista uma heterogeneidade “que é constitutiva do próprio discurso é que é produzida pela dispersão do sujeito” (Brandão, 2002: 66); ou nas palavras de Mascia (2003: 37): “Todo discurso é interdiscurso”. Para Foucault, a verdade das disciplinas científicas surge como um efeito da verdade dos diferentes discursos cujos fios se interpenetram, se cruzam, entrelaçam e misturam no campo discursivo18 de uma época ou cultura. Seguindo essa linha de argumentação, Pêcheux (1983) afirma que um discurso possa ser atravessado por várias formações discursivas e que não seja possível estabelecer limites rígidos entre os vários tipos de discurso. Brandão (2002: 52), igualmente, retoma essa idéia quando explica que “o discurso se tece polifonicamente, num jogo de várias vozes cruzadas, complementares, concorrentes, contraditórias”. Mussalim (2001: 131) acrescenta ainda: “As seqüências lingüísticas possíveis de serem enunciadas por um sujeito circulam entre esta ou aquela formação discursiva que compõem o interdiscurso”. Maingueneau (1984: 11), enfim, realça que a interdiscursividade representa um aspecto essencial de todo discurso e uma condição prévia da sua formação: “O interdiscurso antecede o discurso”. Quanto às estratégias discursivas, Foucault afirma que elas definem as escolhas teóricas dentro de uma formação discursiva. “Discursos”, diz o autor, “dão Maingueneau (1984: 28 apud Brandão 2002: 73) define o campo discursivo assim: “um conjunto de formações discusivas que se encontram em concorrência, se delimitam reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo”. 18 26 lugar a certas organizações de conceitos, a certos reagrupamentos de objetos, a certos tipos de enunciação, que formam, segundo seu grau de coerência, de rigor e de estabilidade, temas ou teorias” (Foucault, 2002b: 71). As ações táticas sobre o discurso são relacionadas com as diferentes maneiras de tratar os objetos do discurso, as diversas formas de enunciação e as possibilidades discursivas de manipular os conceitos (op. cit.: 76). As escolhas estratégicas regularizam, então, a delimitação dos discursos vizinhos, a relação entre eles e a influência que um exerce sobre o outro. Ainda conforme o mesmo autor, a economia e a escolha dos recursos estratégicos são intimamente ligadas ao campo das práticas não discursivas. Por conseguinte, não basta determinar os pontos de ruptura em que os novos discursos emergem e descrever a economia da constelação discursiva; é preciso analisar, também, a função dos discursos nesse campo das práticas não discursivas. Isso significa, de um lado, que o discurso reúne os elementos do arquivo sócio-histórico de conhecimentos de uma cultura e, por isso, deve ser estudado como uma prática estruturada, encaixada nos sistemas normativos da sociedade, das instituições ou da economia; do outro lado, convém interpreta-lo como uma rede de estratégias discursivas já que faz parte, também, dos dispositivos19 que são estabelecidos pela tradição e agregados às instituições da vida pública. 2.1.4. A arqueologia e a genealogia Cada discurso representa, então, um conjunto enorme de enunciados e, simultaneamente, a condição prévia da sua realidade, pois as regras que caracterizam uma prática discursiva “não se impõem do exterior aos elementos que eles correlacionam, [mas] estão inseridas no que ligam” (Foucault, 2002b: 147). O discurso, diz Foucault (id. ibid.), não tem apenas um sentido e uma verdade; ele tem uma história. “[Há] na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização)” (op. cit.: 148). 19 Uma definição do conceito de dispositivo segue abaixo. 27 Foucault chama esse sistema funcional que rege o surgimento, a distribuição e a dispersão dos elementos discursivos de arquivo. Conforme o autor, o arquivo não representa “a soma de todos os textos que uma cultura guardou”, nem deve ser confundida com “as instituições que permitem registrar e conservar os discursos” (id. ibid.). Ele representa um nível particular, “é o sistema geral da formação e da transformação dos enunciados”. (op. cit.: 150; grifes do original). “O arquivo é [...] a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas [...] se agrupam em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas” (Foucault, 2002b: 149). A reconstrução sistemática do arquivo e dos seus monumentos é tarefa da arqueologia do saber. Assim sendo, a análise do discurso deve mostrar, primeiramente, como as estruturas epistêmicas de uma época e cultura constituem o conhecimento: “O que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistemê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição, mas, antes, a de suas condições de possibilidade” (Foucault, 2002a: XVIII). Em seguida, é preciso descobrir as hierarquias intrínsecas às regularidades discursivas e explicar como é possível que certos fenômenos se tornam “fatos” que produzem o discurso e influenciam o fluxo do conhecimento pelo tempo: “A descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma história geral; ela procura descobrir todo o domínio das instituições, dos processos econômicos, das relações sociais nas quais pode articular-se uma formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e sua especificidade não lhe dão, por isso, um status de pura idealidade e de total independência histórica; o que ela quer revelar é o nível singular em que a história pode dar lugar a tipos definidos de discurso que têm, eles próprios, seu tipo de historicidade e que estão relacionados com todo um conjunto de historicidades diversas“ (Foucault, 2002b: 189). O resumo do modelo teórico de Foucault mostra que, para um analista do discurso, não há significados a priori, ocultos atrás dos objetos, ou intenções de um sujeito homogêneo, livre enquanto centro de iniciativas e senhor da sua vontade. Tudo é construído! As palavras só adquirem um sentido dentro de uma formação discursiva e “o sujeito, embora fundamental, porque não existe discurso sem sujeito, 28 perde sua centralidade ao passar a integrar o funcionamento dos enunciados” (Brandão, 2002: 63). Deste modo, “o discurso atravessado por várias formações discursivas passa a ser uma dispersão de textos, e o texto uma dispersão do sujeito que passa a ocupar várias posições enunciativas” (Orlandi e Guimarães, 1986). A realidade social, então, não é representada pelo discurso, mas é constituída por ele e o sujeito é o efeito desse jogo discursivo e não o seu ponto de partida. Nessa visão, são os discursos que “falam” o falante e não o contrário. Eis a materialidade do discurso. É evidente, porém, que o discurso não movimenta o mundo sozinho. Há um conjunto heterogêneo de instituições, construções arquitetônicas, decisões regularizadoras, leis, medidas administrativas, afirmações científicas e teorias filosóficas ou éticas que têm sua importância na formação dos objetos e no jogo que muda as posições e funções dos elementos. Em outras palavras, idéias imateriais e práticas materiais são unidas por um laço comum: elas podem servir ao mesmo objetivo. É preciso abandonar, então, a separação rígida entre práticas discursivas e não discursivas. Isso significa que a noção do texto pode ser estendida, do modo como Laclau (1981: 176) sugere: “A meu ver, o discursivo não se refere aos textos no sentido estrito, mas ao conjunto de fenômenos da produção social de sentido que fundamenta uma sociedade como tal. Portanto, o discursivo e o não discursivo não representam dois níveis opostos, pois não existem fenômenos sociais que são determinados fora do discursivo. A história e a sociedade são um texto não acabado”. Certeau (1984: 166), também, defende essa posição quando afirma que “hoje em dia, o texto é a própria sociedade”. 20 A rede que pode ser tecido entre os elementos discursivos e não discursivos chama-se “dispositivo”. Conforme Foucault, um dispositivo é uma formação de discursos, objetos e acontecimentos que responde, num dado momento histórico, a uma necessidade social. O conceito, então, não abrange apenas todo o conhecimento dito e escrito (a episteme), mas todo o aparelho ao redor deste conhecimento que pode impô-lo como legítimo (Jäger 2001:76). A episteme, então, é apenas a parte discursiva desse aparelho, pois o saber mora também nas ações humanas e nos objetos produzidos à base dos conhecimentos. 20 “Today the text is society itself”. 29 Quando Foucault fala de uma prática discursiva e mostra que essa prática se compõe de certos enunciados, nota-se, quase sempre, que ele pensa em formações e regulamentos que selecionam objetos, distribuem posições de sujeitos, articulam campos discursivos e manifestam materializações lingüísticas. Analisar o discurso, então, é descrever os sistemas de dispersão dos enunciados que o compõem através das suas regras de formação. Cabe ao analista do discurso aliar a instância lingüística à esfera sóciohistórica e analisar o funcionamento do discurso no entrecruzamento da língua, enquanto sistema estrutural, e do acontecimento sócio-interativo vinculado à vida histórica e cultural. Nisso, ele propõe-se a investigar as condições de produção que “permitem a elocução de um discurso é não de outro” (Mussalim, 2000: 116). Em outras palavras, ele analisa “o contexto histórico-ideológico e as representações que o sujeito, a partir da posição que ocupa ao enunciar, faz do seu interlocutor, de si mesmo, do próprio discurso, etc.” (id. ibid.) A análise do discurso, diz Foucault (2002b), não é uma disciplina interpretativa. Ela “não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga, em declive suave os discursos ao que os precede, envolve ou segue” (op. cit.: 159), pois, conforme o autor, a continuidade histórica é nada mais que uma ilusão da interpretação hermenêutica produzida pelos conceitos da tradição, da influência, da evolução e do espírito. “O problema dela [da análise do discurso] é, pelo contrário, definir os discursos em sua especificidade” (op.cit.: 159 seg.). Isso significa, antes de tudo, que o discurso não pode ser reduzido, simplesmente, às intenções dos sujeitos participantes. “A arqueologia”, por conseguinte, “não é ordenada pela figura soberana da obra; não busca compreender o momento em que esta se destacou do horizonte anônimo” (op cit.:160 ) e, já que o discurso representa uma ordem sui generis, não defende “a instância do sujeito criador, enquanto razão de ser de uma obra e princípio de sua unidade” (id. ibid.). O discurso, então, é um campo anônimo cuja configuração define a posição do sujeito. Logo, o trabalho do analista deve ser diagnóstico (op. cit.: 233): “Trata-se de revelar as práticas discursivas em sua complexidade e em sua densidade; mostrar que falar é fazer alguma coisa (op. cit.: 237). Sobretudo, é preciso completar o trabalho arqueológico da formação discursiva por uma análise genealógica das condições de produção e dos mecanismos do poder. Nisso, convém focalizar particularmente as seguintes três dimensões (Maingueneau, 1987): 30 o papel das instituições em que o discurso é produzido e as estratégias que usam para restringir a enunciação; os conflitos culturais, sócio-históricos e ideológicos que se materializam no discurso; e a configuração do espaço que cada discurso arruma para si mesmo no interior do interdiscurso21. Segundo Foucault (2002b: 8), o que o analista do discurso encontra primeiramente, no campo das exterioridades de uma sociedade, são monumentos singulares na sua raridade. Ao descrever esse material, a análise de discurso gera seus próprios objetos: os discursos históricos no momento do seu surgimento. Na descrição desses discursos, é possível partir dos assuntos, dos participantes ou das instituições e disciplinas que organizam o campo discursivo e caracterizam as práticas discursivas. Em seguida, vale localizar as costuras e os enlaçamentos com os discursos vizinhos. Nesse contexto, convém fazer duas observações. Primeiro, é preciso realçar que um discurso não se define pelo fato de poder abarcar um certo tipo de enunciados que se referem ao mesmo objeto ou ao mesmo assunto e que recorrem ao mesmo conjunto de termos ideológicos. É verdade que um conceito ou um tema podem acumular muitos enunciados no seu redor e, enquanto esquemas de produção, representam uma energia discursiva que aumenta a probabilidade que certas posições discursivas opostas se chocam neles, mas poucos conceitos e temas são específicos a um discurso particular e, enquanto são atuais, é evidente que ocorrem em vários discursos simultaneamente. Na análise do discurso, portanto, é mais adequado falar de um ramo discursivo do que de um tema (Jäger, 1993). “Os diferentes discursos e ramos discursivos são intimamente entrelaçados e formam, nesta mistura, ‘o novelo discursivo’ que a análise do discurso deve desenredar; nisso é preciso observar como os diferentes ramos discursivos se influenciam, quais interseções e sobreposições ocorrem, etc”. Particularmente importantes para o decorrer de um discurso ou um ramo discursivo, são os chamados acontecimentos discursivos. Nisso, não se trata de acontecimentos ‘reais’, como um acidente de uma usina nuclear ou um resultado de uma eleição, mas o termo diz respeito ao discurso amplamente desdobrada sobre esses acontecimentos. O acontecimento [‘real’] e o acontecimento discursivo não correspondem necessariamente em proporções e importância: Seja quanto forem as vidas humanas que um acidente de uma usina nuclear custar, se for encoberto, ele não se tornará um acontecimento discursivo (Jäger, 1993: 157). 21 Sobre a noção de interdiscurso, cf. as explicações abaixo. 31 A figura 2 mostra como Jäger (1993) imagina esse ‘novelo discursivo’ que a análise do discurso pretende desembaraçar. Figura 2: O que é um discurso? acontecimento discursivo ramo discursivo acontecimento discursivo Fonte: Jäger (1993: 156) A figura 3 na página seguinte tenta ilustrar que os diferentes ramos discursivos aparecem em diferentes níveis do discurso, por ex., na ciência, na política, nas mídias, na educação, na economia, na administração ou no cotidiano. É de se pressupor que os diversos níveis influenciam-se mutuamente e estabelecem relações recíprocas. Deste modo, é possível que certos fragmentos discursivos do nível acadêmico sejam acolhidos pelos níveis cotidiano ou midiático. Inversamente, é provável também que elementos do cotidiano ou das mídias sejam empregados no nível acadêmico. Ao atravessar os diferentes níveis discursivos, o conjunto dos 32 ramos discursivos de uma época forma o discurso total de uma sociedade dada. Cada indivíduo é envolvido em certos ramos discursivos. Isso significa, como observa Voloshinov (1983 e 1997) que todo enunciado tem intrinsecamente um caráter social. Ainda assim, é impossível que cada texto individual contém quantitativa e qualitativamente todos os elementos de um ramo discursivo. Todavia, mesmo que o texto seja individualmente produzido e mesmo que ele possa definir apenas um certo segmento temático do social, como enunciado social ele tem que ser representado como fragmento de um ramo discursivo e, deste modo, ser encaixado no contexto social mais abrangente. Uma análise válida de um nível ou um ramo discursivos, conseqüentemente, deve estudar um número representativo de fragmentos discursivos. Figura 3: Os níveis do discurso Fonte: Jäger (1993: 183) 33 A segunda advertência refere-se às modalidades enunciativas às quais as diferentes posições de sujeito proporcionam acesso. Um discurso não se distingue do outro, apenas, por um certo estilo de enunciação; pois, ainda que seja inegável que o estilo comum facilita a co-existência de enunciados heterogêneos no mesmo espaço discursivo, o critério decisivo só pode encontrar-se no jogo organizado pelas regras de formação no qual um conjunto de enunciados se envolve, num dado momento histórico, para formar um discurso. A particularidade de um discurso, então, não se constitui pelas maneiras da sua realização lingüística, mas pelas relações que fazem de uma série de signos um enunciado. Visto isso, o analista do discurso não tem como objetivo a compreensão hermenêutica de um documento (Foucault 2002b: 160), mas o questionamento do conceito de verdade no qual a racionalidade do texto se baseia: “A análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade de um sentido; ela mostra à luz do dia o jogo da rarefação imposta, com um poder fundamental de afirmação” (Foucault, 2000: 70). Por conseguinte, ele deve perguntar-se: quais são as regras que dominam a formação do conhecimento compartilhado coletivamente (descrição da estrutura do discurso); como as práticas discursivas se encaixam no contexto social (descrição da relação entre o discurso e seu ambiente); e como os objetos discursivos aparecem e se transformam (análise da dinâmica do discurso)? Em outras palavras, ao explorar as regularidades enunciativas, o analista do discurso deve expor aquilo que o texto tenta esconder. 2.1.5. Razão e poder Analisar o discurso significa descrever as regras de formação que constituem o sistema de dispersão dos seus enunciados. Ora, se vale dizer que certas afirmações, perguntas, problemas ou pontos de vista podem aparecer nos fragmentos discursivos de uma época, é igualmente possível afirmar que outros enunciados são excluídos devido às regras internas do discurso. Os efeitos dessas exclusões podem ser intensificados institucionalmente. 34 Ao ocupar-se com os processos sociais e as estratégias discursivas que querem alargar ou diminuir o campo dos possíveis enunciados, a análise do discurso inclui a dimensão de poder na suas investigações empíricas e nas suas construções teóricas. Para Foucault, há uma ligação íntima entre o poder e o conhecimento; pois é de se pressupor, de um lado, que a produção de conhecimento seja controlada socialmente e, do outro lado, sabe-se que esse controle social, por sua vez, se baseia no conhecimento já produzido. Nenhum lugar e nenhum valor são intocados pelo poder, pois o poder se mostra cada vez que alguma coisa se torna um evento discursivo e, desse modo, um objeto do conhecimento. Os eventos discursivos não são discursos sobre acontecimentos ‘reais’, mas são modos de afirmar ou questionar as verdades legitimas dos discursos hegemoniais. Seu ponto de partida encontra-se nos problemas reais, no lugar dos combates simbólicos que transformam a sociedade. Eles corroboram ou problematizam as verdades historicamente válidas e produzem novas verdades e realidades sociais. O poder, então, não é apenas repressiva, mas também criativa. Nessa perspectiva, há mecanismos e instâncias que facilitam a distinção entre enunciados verdadeiros e falsos e que estabelecem as sanções. Em outras palavras, na busca da verdade há certas técnicas e métodos privilegiados: “Cada sociedade controla suas formas de pensamento e enunciação e realiza uma política da verdade, ou seja, ela aceita certos discursos como verdadeiros e rejeita os outros como falsos ou errôneos; ela desenvolve técnicas e métodos para reconhecer a verdade e para estabelecer critérios que permitem a classificação dos discursos como verdadeiros ou falsos” (Bublitz, 2001: 32). Ambas as dimensões do discurso, o poder e o conhecimento, são associados intimamente. Elas exercem efeitos coercivos num campo estratégico, i. e., é de se pressupor que os elementos do saber representam, simultaneamente, um elemento do sistema do poder e, inversamente, os mecanismos de poder se fundamentem sempre no sistema dos saberes. “O poder”, diz Foucault, não pode ser interpretado como “um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessam o corpo social inteiro” (Foucault, 2001: 88). No mundo moderno não existe mais um centro concreto que estabeleça, exerça e 35 mantenha o controle, mas uma rede infinita de correlações de poder e “constelações de interesses” (Janicaud, 1991: 270). “O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada. [...] O poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis” (Foucault, 2001: 89). No mundo ocidental, a vontade do cidadão e a soberania do governo foram substituídos pela experiência do especialista e pela autorização local de controle. Foucault substitui, conseqüentemente, o antigo modelo jurídico, que pensa o poder nos termos de um contrato social e da proibição e punição de sujeitos, por um modelo estratégico (Foucault, 2001: 97) que questiona a ficção de sujeitos préexistentes e se baseia na visão de uma sociedade disciplinada por normas que funcionam silenciosamente (cf. Plumpe & Kammler, 1980: 210). “O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada. [...] Não há, no princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados, dualidade que repercuta de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo social” (Foucault, 2001: 89 - 90). Nesse modelo, não há lugar para sujeitos que produzem e legitimam sua própria subjugação ao ceder seus direitos ao rei ou ao estado. Assim sendo, a visão do leviatã, invocada por Hobbes, torna-se um mero efeito ideológico que esconde os verdadeiros mecanismos do poder. Conforme Foucault, a maquina moderna, ao produzir súditos úteis, não trabalha mais com um código legal, mas com um código científico. As normas científicas triunfaram obviamente sobre a lei constitucional. A disciplina contemporânea deixou o mundo da lei e do direito, que pertencem a um discurso em extinção, e começou a substituir os princípios legais pelos princípios das normas físicas, psicológicas e morais (cf. Walzer, 1991: 273). Hoje em dia, a racionalidade do poder é a racionalidade de estratégias. “Você acredita que alguém obedeceria ainda o poder se ele fosse repressivo exclusivamente, se ele nunca fizesse outra coisa que negar? Ora, a razão porque o poder domina, porque ele é aceito, é simplesmente que ele não nos oprime como uma força negativa, mas, na verdade, 36 atravessa os corpos, produz as coisas, provoca os prazeres e produz o conhecimento” (Foucault, 1978: 35; trad. HPW). Os indivíduos, diz Foucault, não circulam apenas nas malhas da rede de poder, mas ocupam sempre uma posição em que experimentam e exercem o poder simultaneamente. “Eles nunca são o alvo imóvel e consciente desse poder, mas sempre seu elemento de ligação” (apud Walzer, 1991: 267). O poder, então, só pode ser concebido junto com a possibilidade da resistência: “Onde há poder, há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (Foucault, 2001: 91). Em outras palavras: “[Não existe] um lugar da grande Recusa – alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos” (op. cit.: 91). A ordem do discurso não é estabelecida pela intervenção da vontade, mas pelo poder. Inversamente, o poder e o saber são distribuídos e estabelecidos pelo discurso. “[Contudo], não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes” (Foucault, 2001: 95). Os discursos, então, não se submetem inequivocamente ao poder e, igualmente, não se oponham decididamente a ele. Os discursos, assim, contribuem na estruturação das relações de poder e, deste modo, representam, eles mesmos, um fator do poder: “É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo” (Foucault, 2001: 96). O poder se impõe discursivamente. O discurso define e legitima a área da verdade e, sendo assim, exerce um poder social. Esse poder do discurso é debatido; nomeadamente as instituições políticas querem apoderar-se dele: “Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 2000: 9). 37 Assim sendo, Foucault descreve um conjunto de procedimentos que funcionam como controle e delimitação do discurso. A tabela 1 mostra que a usurpação do discurso e sua regulamentação se realizam, em parte, por sistemas exteriores de exclusão que funcionam como disfarces das verdadeiras forças que estão por trás do jogo discursivo. A saber, esse tipo de pressão coercitiva visa a controlar o desejo e o poder e encobre, por assim dizer, os prazeres com o véu da verdade (op. cit.: 20). Foucault menciona, nesse contexto, a restrição ou proibição de objetos discursivos (“palavras proibidas”), o ritual da circunstância e o privilegio do sujeito (op. cit.: 9). Ao mesmo grupo de procedimentos pertencem, também, a classificação e rejeição de enunciados supostamente absurdos (“separação entre razão e loucura”) (op. cit.: 10) e a separação institucionalizada do verdadeiro e do falso (“vontade de verdade”) (op. cit.: 13). Tabela1: Procedimentos da rarefação e do controle do discurso PROCEDIMENTOS DA RAREFAÇÃO E DO CONTROLE DO DISCURSO (CONFORME: MICHEL FOUCAULT, 2000: A ORDEM DO DISCURSO. SP: ED. LOYOLA) 1. Procedimentos de exclusão: controle do desejo e do poder: diferenciação do interior e do exterior do discurso. 2. Procedimentos do controle interno: controle da casualidade e da produção discursiva: formação da identidade. 3. Procedimentos da rarefação do sujeito falante: controle do acesso ao discurso: formação do sujeito A. Interdição: a) tabu do objeto b) ritual da circunstância c) direito privilegiado ou exclusivo do sujeito A. Comentário: identidade na forma da repetição do mesmo A: Rituais (por ex.: audiência num processo judicial, culto religioso, sessão de psicoterapia) B. Oposição da razão e da B. Autor: loucura identidade na forma da individualidade e do eu B. Sociedade de discurso (por ex.: rapsodos, escritores) C. Oposição do verdadeiro C. Disciplina: e do falso identidade na forma de uma re-atualização permanente das regras C. Doutrinas (por ex.: os dez mandamentos, programas políticos) D. Apropriação social dos discurso (por ex.: o sistema educacional) 38 Outra parte do regime da produção discursiva provém de procedimentos internos, tais como a repetição do mesmo instaurada pela distinção entre os discursos fundamentais e seus comentários considerados secundários (op. cit.: 21 26), o princípio do autor que estabelece a identidade subjetiva e proporciona uma origem e uma unidade às significações de um discurso (op. cit.: 26 – 29) e a organização das disciplinas que garante a re-atualização permanente das regras discursivas e, deste modo, delimita a construção de novos enunciados (op. cit. 29 – 36). Numa terceira parte, enfim, o fluxo do discurso é controlado por exigências funcionais que não permitem que todo mundo tenha acesso ao discurso. Nisso, Foucault reporta-se à ritualização da palavra que “define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam” (op. cit.: 39), a organização de “sociedades de discurso” (id. ibid.) que determinam a produção, conservação e distribuição dos discursos, a formação de grupos doutrinários “que liga[m] os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, conseqüentemente, todos os outros” (op. cit.: 43) e as divisões sociais que regulam o acesso aos discursos e a apropriação do conhecimento e do poder contido neles (id. ibid.). Os sistemas de exclusão têm todos em comum que querem legitimar e reproduzir a ordem vigente do discurso e reprimir a produção desenfreada dos eventos discursivos: “Tudo se passa como se interdições, supressões, fronteiras e limites tivessem sido dispostos de modo a dominar, ao menos em parte, a grande proliferação do discurso. De modo a que sua riqueza fosse aliviada de sua parte mais perigosa e que sua desordem fosse organizada segundo figuras que esquivassem o mais incontrolável” (Foucault, 2000: 50). O discurso estabelece a unidade e a ordem sociais através de processos constitutivos e classificatórios e, ao mesmo tempo, contribui na sua fragmentação através da categorização do pensamento e de práticas divisórias. O conhecimento, evidentemente, estabelece-se na sociedade por processos de avaliação, separação e distribuição. As possibilidades ilimitadas do discurso são controladas, restringidas e escasseadas permanentemente. Observa-se, no entanto, que o lugar do controle é, ao mesmo tempo, o lugar da transgressão, pois o discurso não estabelece apenas a ordem, mas também a transforma continuamente em desordem, pois, apesar das pressões da 39 ordem vigente, os sujeitos que obtêm um acesso ao discurso nem sempre são subjugados, determinados e obedientes inteiramente. Foucault percebe isso claramente, quando corrige seu conceito original da ordem do discurso: “Acredito que naquela ‘Ordem do Discurso’ misturei duas concepções, ou seja, que propus uma resposta inadequada a uma pergunta que me parece legítima (a da ligação entre os fatos discursivos e as relações do poder). Trata-se de um texto que escrevi numa fase transitória. Me parece que, até então, eu aceitei o conceito tradicional do poder como um mecanismo essencialmente jurídico, como aquilo que a lei diz, que proíbe, que diz não com toda uma série de efeitos negativos: exclusão, rejeição, impedimento, negação, disfarce, etc. Hoje considero essa concepção inadequada” (Foucault, 1977: 228; tradução HPW). O discurso, então, tem um caráter constitutivo porque afirma, nega, questiona e transcende simultaneamente as ordens do poder e da verdade. É possível estudar, nesses “jogos de limitações e exclusões” (op. cit.: 45), como as categorias desenvolvidas nos diferentes arquivos de conhecimento se transformam em mecanismos de classificação e diferenciação social. A saber, cada sociedade tem sua ordem do poder e sua ordem da verdade, Ela aceita certos discursos como legítimos porque permitem uma distinção entre verdadeiro e falso e recorrem a técnicas privilegiadas de construir e divulgar a verdade e mantê-la em circulação. A verdade é ligada às técnicas e aos efeitos de poder. Ela é historicamente inventada e tem seus efeitos dentro da hegemonia22 social, econômica e cultural. Foucault fala de técnicas culturais que transformam os homens em sujeitos (Dreyfus & Rabinow, 1987: 246). A subjetividade, então, é submetida às coerções das materialidades lingüística e social que estabelecem as condições de produção, ou seja, é assujeitada a uma ordem superior. Ao mesmo tempo, em que o sujeito é interpelado pela ideologia, ele ocupa, na formação discursiva que o determina, com sua história particular, um lugar que é especificamente seu. Ora, “as imagens que os interlocutores fazem de si e do outro [dependem] do lugar que eles ocupam no contexto histórico-social” (Mascia, 2003: 28). Conforme Pêcheux (1995: 85), toda formação social é influenciada por determinadas regras de projeção que definem o contexto dos eventos discursivos e as posições subjetivas. A relação entre as posições subjetivas dos interlocutores não se configura aleatoriamente. Ela é determinada por regras que a análise das condições de produção pode revelar. 22 Sobre a noção de hegemonia cf. Kallscheuer, 1987; Kramer, 1975 e Portelli 1977: 61 - 83 40 É possível criticar ou problematizar o discurso (dominante), mas o crítico tem que se conscientizar de que sua crítica não o posicione fora do discurso. “A resistência nunca se encontra fora do poder” (Foucault, 1983; trad. HPW). Seja qual for a posição do sujeito, ele não pode recorrer à “verdade” e deve lembrar-se sempre de que as opiniões, os valores, as normas ou as leis defendidas sempre são historicamente fundadas no discurso. Sua posição, portanto, sempre representará o resultado de um processo discursivo. O discurso, evidentemente, não é interessante apenas como uma prática social, mas serve, sempre, a uma determinada finalidade. Os enunciados exercem efeitos de poder quando se ligam às instituições e aos regulamentos. Um efeito do discurso socialmente produzido é que a sociedade tem que se defender permanentemente das tendências anti-sociais e patológicas e das classes e dos indivíduos “perigosos” que ela mesma produziu e que exigem intervenções corretivas por representarem uma ameaça contínua à regularidade dificilmente estabelecida do conhecimento e da prática social. “Em resumo, .... a questão não é o engano, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia, mas a própria verdade.” (Foucault, 1978: 54). É claro que o desaparecimento do sujeito autônomo nos capilares do poder ideológico implica numa atitude pessimista com respeito às possibilidades das ações intencionais dos indivíduos e da política em geral. Deste modo, mesmo que parece plausível que “toda relação de poder traz a possibilidade de resistência” (Coraçini, 2003: 14), não é raro que pensadores pós-modernistas se conformam com a mesma visão que Wolfgang Welsch (1987: 17) expõe no seu livro sobre o mundo pós-modernista: As possibilidades históricas são representadas e analisadas minuciosamente e as sociedades industializadas assumiram uma forma de reprodução que não precisa nem poderia precisar de novos conceitos e novos valores ou, em geral, de novos impulsos se eles apareçessem. O que funciona e contiunuará funcionando é o aparelho sócio-económico do abastecimento das massas humanas cada vez maiores. O resto – dos planos fantásticos para mudar o mundo ate o protesto numa pequena parcela siocial - tudo é ilusão e permanece efêmero e imitativo. As únicas forças decisivas são de natureza institucional-técnica; os esforços culturalintelectuais são mero teatro.23 Die geschichtlichen Möglichkeiten sind durchgespielt, und die Industriegesellschaften haben eine Reproduktionsform angenommen, die neue Konzeptye, neue Werte überhaupt neue Impulse weder braucht noch, wenn sie denn aufträten, brauchen könnte. Was läuft und weiterläuft ist der sozioökonomische Apparat der Versorgung ständig wachsender Menschenmassen. Alles andere – von der grossen Schlüsselattitüde bis zum Parzellenprotest – ist Illusion, bleibt ephemer und epigonal. Die bewegenden Kräfte sind allein institutionelltechnischer Art, die kulturell-geistigen bloss noch Theater. 23 41 2.2. As diferentes abordagens da escola francesa da análise do discurso Os estudos já realizados no âmbito da análise do discurso da escola francesa assumem, de modo geral, duas perspectivas diferentes cujas implicações opostas muitas vezes são ignoradas. De um lado, os discursos são lidos com respeito à estratificação social. Nesse sentido, o discurso é o lugar onde as ideologias se encontram e a análise do discurso é a análise da dimensão ideológica do uso lingüístico e da materialização de uma ideologia na língua. Nesta perspectiva, a questão central é: quais são as interdependências entre a posição social e a forma lingüística articulada? Do outro lado, há uma perspectiva que se interessa mais para a emergência e a diferenciação dos discursos. Essa abordagem pergunta em que medida e à base de qual divisão de trabalho, os discursos representam as diferentes áreas de conhecimento de uma sociedade. Quais são as associações, seleções e exclusões e como ocorre a redução e a totalização imaginária no interdiscurso? Investiga-se, também, como os acontecimentos discursivos modificam o discurso e como os discursos mais especializados em estrutura, posição e função se formam à base de outros, mais gerais. Enquanto as abordagens marxistas (da sociolingüística a Pêcheux) têm em mira, particularmente, o eixo vertical, que representa a estratificação social, as abordagens mais “estruturalistas” (de Foucault a Link) se ocupam, preferencialmente, com o eixo horizontal e a divisão funcional dos discursos. Talvez seja adequado dizer que os estudos do primeiro eixo se ocupam mais das ideologias e das formas específicas da prática de uma classe social, enquanto os trabalhos que se interessam mais pelo segundo eixo focalizam, sobretudo os estereótipos e as mentalidades que circulam em todas as classes sociais (o que não significa que eles sejam ideologicamente neutros). A forma mais comum da análise do discurso, sem dúvida, é a análise lexicológica ou semântica de palavras, conceitos e metáforas. Nessa abordagem, as questões principais são: Quais palavras ocorrem nos textos; onde, quando e com qual freqüência? Quais complementaridades, oposições ou substituições existem entre essas palavras ou sintagmas? Um problema de todas as análises de discurso que se orientam no léxico ou no tema, é a representatividade das suas fontes e dos 42 seus resultados. Uma solução possível é trabalhar com um corpus tão abrangente que sua análise ganha significância estatística. Isso é a abordagem da lexicometria, que realiza uma análise lexicológica de grande escala com a ajuda de computadores. Ela não seleciona apenas certas palavras-chave, conceitos ou sintagmas, mas inclui conjuntos enormes de textos com todos os seus elementos. Uma desvantagem desse tipo de análise é que o computador consegue apenas ler as palavras, enquanto as estruturas sintáticas, nas quais as palavras recebem seu sentido e se transformem em discurso, não podem ser avaliadas eletronicamente. Eis o ponto de partida de outros métodos analíticos da escola francesa da análise do discurso. A origem comum dessas abordagens encontra-se na recepção do distribucionalismo de Zellig Harris (1952) nos anos 60. A abordagem de Harris – longe das análises tradicionais de conteúdo – trouxe, como novidade, uma guia objetiva de leitura que se apóia, exclusivamente, nas regras formais da gramática. Com esse instrumento, é possível desmontar os textos em segmentos lingüísticos e reunir os fragmentos conforme conceitos e temas tipológicos. Desse modo, a morfologia supostamente única de cada texto e nivelada e a estrutura semântica de diferentes textos pode ser comparada sem intervenções diretas no conteúdo. O resultado desse tipo de análise é uma tipologia “objetiva” de discursos especiais (políticos, sócias, etc.) baseada em critérios sociolingüísticos. Contra esse método, levantou-se a objeção que ele pressupusesse uma isomorfia entre o discurso e a prática social e que os discursos são concebidos como um simples reflexo dos conflitos sociais. Alegou-se que a materialidade particular da língua e da produção lingüística de sentido não fosse considerada suficientemente. Justamente aqui, entra o método da “análise automática do discurso” desenvolvido por Pêcheux (1983, 1984, 1996. 1997a, 1997b). O adjetivo “automático” não deve ser interpretado no seu sentido técnico, mas, no seu sentido teórico, como antônimo de “subjetivo”; além disso, ele conota, evidentemente, a prática surrealista da “écriture automatique”. Ao contrário da abordagem sóciolingüística, mencionada acima, esse método não aspira a uma hierarquização e tipologia dos modos de falar, mas a uma representação dos efeitos semânticos que ocorrem no âmbito de diferentes formações discursivas. Pêcheux focaliza os efeitos ideológicos que as formações discursivas têm sobre o posicionamento das pessoas como sujeitos sociais. Seguindo Althusser (1998), ele afirma que as pessoas vivem na ilusão de serem a fonte do seu próprio 43 discurso, enquanto, na verdade, seu discurso e eles mesmos são o resultado do seu posicionamento ideológico. As verdadeiras fontes do seu discurso e os processos do seu posicionamento, geralmente, lhes permanecem escondidos. Eles não têm a consciência do fato de eles falarem ou escreverem a partir de uma certa posição discursiva. Além disso, as próprias formações discursivas nas quais as pessoas são posicionadas também são afeiçoadas pelo complexo conjunto dominante das formações discursivas que Pêcheux chama de “interdiscurso”. Este método é muito custoso e complicado; logo ele é adequado apenas para a comparação de textos curtos e exemplares cujas relações significativas podem ser representadas frase por frase. Apesar dessa restrição, existem muitas análises empíricas de discursos que foram elaboradas com esse método. Sobressai, nesses estudos, que os custos enormes de trabalho se justificam, antes de tudo, pelo interesse em conhecimentos lingüísticos. O lucro para a pesquisa histórica, geralmente, é pequeno. Muitas vezes, os resultados confirmam apenas hipóteses já comprovadas pela pesquisa “tradicional”. Assim sendo, não é de admirar que a historicista Régine Robin (1986: 160) chega a seguinte conclusão: “Usando nossas tabelas e classes de equivalência foi possível comprovar, apenas, o que o conhecimento histórico já sabia anteriormente”. 2.3. O sistema dos símbolos coletivos Um dilema fundamental do modelo teórico de Foucault é que seu conceito do discurso oscila entre dois aspectos bastante diferentes que não se associam coerentemente. A saber, a “Ordem do Discurso”, distingue entre procedimentos “internos” através do quais os próprios discursos controlam a produção discursiva e mecanismos “externos” de exclusão que são impostos pelo poder (Foucault, 2000b). Foucault realça, de um lado, a importância das regras internas da formação e constituição discursivas; assim sendo, ele vincula seu conceito do discurso à teoria lingüística. Do outro lado, ele salienta o papel das práticas e dos rituais e define o discurso através do seu encaixamento institucional, por exemplo, em bibliotecas, editoras, sociedades de discurso, etc. Essa definição “externa” liga o modelo de Foucault à teoria sócio-histórica e à sociológica. O conceito do discurso, assim, diz respeito a todas as questões do enquadramento social e institucional e aplica-se ao problema da correlação funcional entre o 44 discurso e seus agentes sociais. Baseada em noções lingüísticas, a definição “interna”, por sua vez, implica em assuntos como o gênero textual, a textualidade ou o estilo. Entre essas duas definições, ou seja, entre o conhecimento e as instituições, há uma lacuna que a abordagem de Foucault não consegue preencher coerentemente, pois o autor descreve bem os métodos de funcionamento e de reprodução das instâncias sociológicas/institucionais e semióticas, mas ele não explica onde e como estabelecer uma conexão entre elas. A passagem que falta na abordagem de Foucault aparece quando se leva em conta que as atividades comunicativas correspondem às diferentes áreas da prática e são institucionalizadas conforme a divisão de trabalho de uma dada sociedade. De fato, Luhmann (1970, 1975 e 1981; passim) explica pormenorizadamente como a dialética entre a distribuição e a integração das funções sociais representa simultaneamente uma causa e um princípio da ligação entre os atores sociais, as instituições e os discursos. Baseado na união incessante desses processos opostos de divisão e de assimilação que caracterizam a “diferenciação funcional das sociedades modernas” (Luhmann, op. cit.), as formações discursivas, de um lado, se caracterizam por uma tendência imanente a especializar-se cada vez mais e, do outro lado, observa-se simultaneamente “uma engrenagem cultural” (Link, 1988a: 285), i.e., uma tendência à reintegração e à união com outras formações discursivas. Link reconhece a importância desse mecanismo dialético quando afirma: “O conjunto dos discursos especiais, como parte essencial da estrutura social é um resultado da divisão das funções e do trabalho nas sociedades modernas. [...] É importante para cada sociedade que seus discursos especiais que tendem a afastar-se um do outro sejam reintegrados mediante um dispositivo de formas interdiscursivas. Entra outras coisas, fazem parte desse dispositivo, o simbolismo coletivo, i.e., o conjunto de ‘imagens’ através das quais a sociedade ‘pensa’ suas ações, seus processos, seus conflitos, seus acontecimentos, etc” (Link, 1986a: 14). Quanto ao processo repartitivo, convém observar que todo tipo de prática institucionalizada, na medida em que se baseia na divisão do trabalho e nos seus próprios rituais, corresponde a uma determinada área de conhecimento, ou seja, a uma formação discursiva particular. Os discursos especiais formam seus próprios objetos e geram sua própria gramática e seu próprio léxico. Há, portanto, um discurso médico, jurídico, desportista, etc. É evidente que a tendência de especializar-se cada vez mais, representa um desafio enorme para a comunicação 45 cotidiana de uma sociedade. Como o engenheiro e o operário ou o médico e o paciente ainda conseguem comunicar-se? Conforme Link (1984) eles se compreendem por que além do discurso especial, existem jogos lingüísticos que promovem um processo integrador que assume a função de repor certos elementos dos discursos especiais ao conhecimento comum. Logo, há uma grande quantidade de elementos, segmentos e estruturas discursivos que pertencem simultaneamente a diferentes campos discursivos. O conjunto total desses elementos comuns chama-se interdiscurso. A impressão da unidade cultural, o fato de perceber semelhanças entre o estilo político e o esporte de uma sociedade - é – entre outros fatores - um efeito desse interdiscurso. “Há elementos discursivos [...] que não se delimitam a um único ou poucos discursos especiais, mas que estão condizentes com vários discursos. Um exemplo típico é o simbolismo coletivo [...]: hoje em dia não se fala constantemente de fairness [jogo limpo] apenas no discurso do esporte, também nos discursos jurídico, político, religiosos, etc; fairness, então, é um elemento típico do interdiscurso. É possível distinguir os diversos discursos [...] quanto à sua quota-parte ou participação no interdiscurso. As ciências especiais, então, estão mais longe do interdiscurso; ao contrário disso, os discursos jornalístico, político e literário são ancorados muito forte no interdiscurso. Os elementos (da língua natural) de natureza puramente semânticos (como símbolos, linguagem floreada, gírias, mitos, caracteres, palavrório) formam, na sua totalidade, o fundamento de sistemas ideológicas (Marx/Engels) porque totalizam imaginariamente as áreas parciais da sociedade.” (Link, Jürgen. (1983). Stichwort “Interdiskurs”. KultuRRevolution, 4: 66). Uma outra insuficiência da abordagem de Foucault tem sua origem no fato de que seu conceito do discurso se refere antes de tudo aos discursos científicos. Para completar seu modelo e para facilitar, por exemplo, a análise dos discursos literário, midiático ou cotidiano, é recomendável estender a vista e levar a área dos discursos não científicos em consideração. Claro que o estudo dos textos desses níveis do discurso não pode delimitar-se à mera descrição da sua forma ou do seu conteúdo. Também não é conveniente alargar simplesmente a noção de enunciado como Foucault a concebeu, mas o quê é preciso descobrir ainda é a relação com a prática social que se materializa nos diferentes discursos não científicos de uma certa época ou um certo lugar. Como já se viu, para resolver o problema dos discursos não científicos, Link (1982, 1983, 1985, 1986a, 1986b, 1988b, 1992a, 1992b) propõe, num primeiro 46 passo, partir o discurso em duas áreas principais, nomeadamente, o conjunto dos discursos especiais e o interdiscurso. Conforme o autor, o primeiro inclui as formações históricas dos discursos especiais no sentido de Foucault, enquanto o segundo termo, diz respeito às relações transversais que interferem, ligam e integram os diferentes discursos especiais (cf. Link & Link-Heer, 1990: 92). Retomando a constatação de Foucault que o discurso inclui “certas áreas especiais do conhecimento, cujo saber é normalizado, institucionalizado e vinculado a determinadas ações [...] e que esse saber pode ser enunciado legitimamente apenas por falantes autorizados”, Link (1986b: 4seg.) afirma, num segundo passo, que os discursos especiais e o interdiscurso são relacionados pelo fato de o último incluir “o conjunto bastante selecionado dos conhecimentos gerais de uma cultura” (op. cit.: 5). De fato, é uma observação comum que os filósofos populares, os jornalistas e os outros participantes do interdiscurso recorrem freqüentemente ao conhecimento dos discursos especiais quando discorrem sobre assuntos do conhecimento geral. Explica-se, desse modo, “a impressão da unidade cultural” que se impõe, por exemplo, quando descobrimos “semelhanças entre o ‘estilo’ político e o ‘estilo’ esportivo de uma sociedade” (Link, 1982: 11). Foucault (2002b) ainda definiu os elementos interdiscursivos como um mero “conjunto de fatos comparáveis”. Link, no entanto, vê na “configuração interdiscursiva” de Foucault (2002b) mais do que uma mera relação entre os discursos especiais. Assim sendo, ele alarga a concepção de Foucault e estabelece o interdiscurso como um contra-peso aos discursos especiais. A distinção de Link não representa, então, uma negação do modelo de Foucault, mas um instrumento para vencer a mencionada incompatibilidade epistemológica que dificulta a associação das práticas discursivas e não discursivas. O interdiscurso, no modelo de Link (1986: 5), representa uma aglomeração flutuante dos mais diversos fragmentos discursivos que se relacionam uns com os outros em graus diferentes e que são influenciadas continuamente pelos discursos especiais. As formas interdiscursivas surgem, então, do jogo continuo entre as interferências dos discursos especiais ou, em outras palavras, os discursos especiais alimentam o interdiscurso. O esquema apresentado pela figura 4 na página seguinte mostra como Link (1986b:2) visualiza seu conceito do discurso: as fatias na metade inferior do círculo representam os discursos especiais das três grandes áreas discursivas: 47 primeiro, os discursos das ciências naturais, segundo, os discursos das ciências humana e terceiro, os discursos especiais que são dominados pelo interdiscurso e que se ocupam, especialmente, com a integração e totalização dos discursos especiais das sociedades modernas: Figura 4: O conceito de discurso conforme Link Fonte: Link (1986b: 2) “Baseado nos diferentes discursos especiais, acumula-se um conhecimento geral sobre a cultura nas formas discursivas de natureza totalizadora e integrativa (por ex., o jornalismo, a ciência popular, a filosofia popular...). O conjunto dessas informações muito selecionadas chama-se interdiscurso. O interdiscurso não é regulamentado e sistematizado explicitamente como os discursos especiais; ele não é obrigado a fornecer definições ou a ser livre 48 de contradições, etc. Tentamos caracterizar o interdiscurso pela imagem de um novelo flutuante”.24 Quanto às condições de produção do interdiscurso, é de se pressupor que a mesma relação entre poder e discurso que determina a enunciação das verdades dos discursos específicos vale para a aceitabilidade ou exclusão de enunciados interdiscursivos. As diferentes modalidades do interdiscurso são tão institucionalizadas como os discursos especiais. O discurso hegemonial e as maneiras de questiona-lo e resistir a ele fazem parte do mesmo jogo discursivo. Explica-se, assim, porque é impossível simplesmente abandonar uma cultura hegemônica: ninguém pode fundar uma nova cultura a sós. Deixar uma cultura e abandonar seu discurso significa entrar em outra cultura e imergir em outro discurso. Logo, quem quer mudar a sua tem que negociar compromissos e convencer os outros. Van Dijk (1977, 1987, 1993a, 1993b e 1997) mostra que os indivíduos empregam esquemas fixos e modelos ou protótipos (“frames” ou “scripts”) que são socialmente preestabelecidos e aprendidas no decorrer da socialização. Ainda que esses esquemas não têm sua origem no indivíduo, é de se pressupor que os falantes não lhes são subjugados totalmente. Se as condições da vida permitirem uma alteração das rotinas, seria possível, por princípio, alterar esses esquemas, mas, de fato, isso ocorre raramente, porque os indivíduos, em geral, preferem concretizar, compreender e aceitar os esquemas preestabelecidos e enriquecem-nos apenas com experiências próprias e com informações pormenorizadas provindo das mídias ou dos outros membros da comunidade (op. cit.: 373). Conclui-se, então, que a idéia de um sujeito cartesiano, agente das suas ações é incompatível tanto com o conceito dos discursos especiais de Foucault quanto com o conceito do interdiscurso de Link. O enunciado é sempre expressão da heterogeneidade das posições do sujeito. Logo, ao integrar e totalizar o saber dos discursos especiais, o interdiscurso torna anônima a posição do sujeito. Conforme Link (1982:11), isso significa que o interdiscurso é capaz de transformar, 24 aus den verschiedensten spezialdiskursen sammelt sich nun in den redeformen mit totalisierendem und integrierendem charakter (z. bsp. journalismus, z. bsp. populärwissenschaft und populärphilosophie...) ein stark selektives kulturelles allgemeinwissen, dessen gesamtheit hier interdiskurs genannt wird. der interdiskurs ist nicht wie die spezialdiskurse explizit geregelt und systematisiert, ihm werden keine definitionen abgefordert, keine widerspruchsfreiheit usw. bildlich haben wir den interdiskurs als ‘fluktuierendes gewimmel’ zu kennzeichnen gesucht. 49 “em unidades culturais”, os elementos discursivos que se sobrepõem nos discursos especiais. Uma parte importante dessas unidades culturais acha-se no conjunto dos símbolos coletivos que representa o objeto principal do trabalho analítico de Link (1982 1986a, 1988 e 1992). Esses símbolos representam signos lingüísticos particulares à medida que estabelecem uma conexão entre os fenômenos lingüísticos e não lingüísticos do discurso. Os símbolos coletivos, por definição, ligam diferentes áreas sociais de experiências. Visto isso, Link (1984: 72) pode afirmar que o simbolismo coletivo representa um aspecto interno da estrutura discursiva cuja análise pode facilitar a solução do dilema “discursivo” de Foucault (id. ibid.). Um símbolo coletivo pode ser empregado em diferentes campos discursivos (por ex.: nos discursos político, religioso, erótico, econômico ou cultural) e a partir dos mais diversos pontos de vista ideológicos. Outrossim, ele contém, além do conteúdo lingüístico, elementos icônicos que, por si mesmos, já são meios apropriados para transmitir mensagens inconscientes. Além disso, mesmo que popularizado, ele ainda tem como conotação um determinado discurso especial como área de sua origem. Link (1982: 6 seg.) afirma que o repertório desses símbolos é amplamente divulgado e que os membros de uma sociedade contam com a realização deles. Em outras palavras, seu emprego como recurso lingüístico não é aleatório. Sendo assim, os símbolos coletivos representam, ainda conforme o mesmo autor (1982:8), uma expressão do “sujeito coletivo de uma sociedade”. Ora, é de se pressupor que cada cultura e cada época dispõem de seu próprio conjunto de símbolos preferidos coletivamente. Link (id. ibid.) afirma, portanto, que cada um desses símbolos se encaixa num sistema inteiro que se baseia no inconsciente coletivo. O autor (1982:10) chama esse sistema o “Sistema Sincrônica de Símbolos Coletivos” (SiSiCol)25. A experiência mostra que os símbolos individuais, em geral, não são muito profícuos, nem muito perniciosos para a reprodução de uma ideologia. Por outro lado, onde há possibilidades combinatórias e/ou efeitos de contraste, é comum observar que a formação de cadeias de símbolos amplia sua utilidade prática imensamente. Conseqüentemente, se o estudo dos símbolos coletivos quiser descobrir como “o fluxo do conhecimento 25 synchrones system der kollektivsymbole = sysykoll 50 pelo tempo” contribui na formação dos sujeitos e na reprodução das relações de poder, é evidente que sua análise não pode ocupar-se isoladamente de símbolos individuais. Uma análise do estoque de símbolos coletivos, no entanto, pode fornecer uma visão geral da realidade social ou da topografia política de uma sociedade. Conforme Link (1984), as regras mais importantes da concatenação de símbolos diferentes baseiam-se em catacreses, i.e., na aplicação de um termo figurado por falta de um termo próprio. No interdiscurso, essa figura de linguagem assume funções diversas: primeiro, ela estabelece as conexões entre os enunciados e as áreas de experiências, segundo, ela lança uma ponte sobre as contradições implícitas a cada discurso, e terceiro, ela gera plausibilidade, facilita a aceitação e fortalece, desse modo, o poder dos discursos. Um exemplo de Jäger (2000) mostra que as catacreses não interpretam apenas um fato preexistente, mas contribuem na produção da própria realidade: “A locomotiva do progresso pode ser refreado tanto pela maré de imigrantes que nosso país cairá numa posição off-side [impedido]26”. É evidente que a locomotiva, o símbolo do progresso, a maré, o símbolo da ameaça vindo do exterior, e o impedido, o símbolo da crise econômica e social têm sua origem em diferentes áreas iconográficas, a saber, no primeiro caso no transito, no segundo caso, na natureza e no terceiro caso no esporte. Esse pequeno exemplo permite duas observações: primeiro que o conteúdo icônico de um símbolo pode ser associado ao conteúdo de outras imagens simbólicas; e segundo, que o mesmo conteúdo tem que se materializar sempre num enunciado concreto. Essa associação dupla, ao sistema de símbolos coletivos e ao significado de um enunciado concreto garante a coesão do interdiscurso de uma época ou uma cultura. Num outro exemplo, Link (1984:12) explica o esquema básico do simbolismo coletivo no sistema político da Alemanha. Veja a figura 5 na página seguinte que o autor comenta assim: “A linha circular representa o limite do nosso sistema; a linha horizontal permite a distinção de uma ala esquerda e uma ala direita e do meio (ou seja, a representação de um sistema político rudimentar). A linha vertical representa a seção superior, a seção inferior e, novamente, o meio do nosso sistema. A linha diagonal (que representa uma terceira dimensão), 26 Die Lokomotive des Fortschrittskann durch Fluten von Einwanderern gebremst werden, so dass unser Land ins Abseits gerät. 51 finalmente, estabelece o eixo para trás – no meio – para frente que é interpretado, freqüentemente, de maneira temporal: reação – progresso”. Figura 5: O esquema básico do simbolismo coletivo na política alemã em cima (+) FORA ponte DENTRO hierarquia à esquerda anterior (+) à direita no meio (+) abertura posterior (-) em baixo (-) Fonte: Link, 1984: 15 Como mostra a figura 6, na página 52, o autor alarga esse esquema básico em seguida e enriquece o tópico com diferentes símbolos cuja escolha não é aleatória. Link comenta esse esquema ampliado assim: “Eu mostro o progresso se movendo para cima como um foguete ou como um submarino emergindo no mar. Em baixo da linha horizontal encontra-se a escuridão do submundo, da selva ou da Idade Média e da Idade da Pedra. Como se vê, nosso sistema realmente se assemelha muito a um submarino ou a uma estação espacial; por isso, acredito que o ‘snorkel’ telescópico não pudesse faltar; refiro-me ao cano em cima que representa a conexão com aquele elemento exposto do nosso sistema que também pode ser identificado como uma enclave ligada por um corredor. O objeto inversamente correspondente ao corredor é a galeria subversiva que, vindo de fora, pode ser cravado em nosso sistema (não é um acaso que ela aparece como uma serpente). Por esse caminho, a maré pode infiltrar-se e o câncer pode espalhar-se dentro de nos [...], no caso mais extremo, a fenda formada pelo corredor interno pode atravessar todo o sistema e racha-lo [...]. No centro do nosso sistema, encontra-se nosso coração, nosso motor ou nossa fonte de energia (por conseguinte, tudo que se encontra no exterior, literalmente, não tem coração). Se não queremos cair numa situação difícil, é indispensável manter o equilíbrio; sobretudo, é preciso manter as paredes exteriores do caldeirão impermeáveis [...] ao caos da maré, do deserto, do mar glacial, da selva, do universo vácuo, das 52 53 trovadas, dos relâmpagos, das tempestades, dos fogos, da noite escura, dos monstros e dos vírus. No meio do seu tanque encontra-se o sujeito: seja como ‘eu’ ou seja como ‘nós’, ele é igualmente singular no meio da sua propriedade – enquanto lá fora, a escuridão [...] aumenta cada vez mais” (Link, 1984: 13).27 Nota-se que a área interior é representada por símbolos que tem sua razão de ser, em última instância, no corpo humano ou nos veículos industriais, por exemplo, no carro, no foguete ou no submarino. Para a área exterior, encontram-se símbolos que marcam o caos: a maré, o fogo, a tempestade, etc. É comum, também, referir-se aos inimigos interiores e exteriores com símbolos que lhes negam o status de um sujeito: animais selvagens, feras, parasitas, etc. Conforme Link, todas essas figuras pertencem ao SiSiCol, porque são compreendidos imediatamente por todos os membros da sociedade alemã. Para ilustrar o assunto, o autor dá uma série de exemplos: “Devido à sua ambivalência, o submarino representa simultaneamente o símbolo mais perigoso e mais fascinante do ‘nosso’ sistema industrial militarmente fechado (...). Quando o submarino caça com seus torpedos os petroleiros, ele se transforma num tubarão e, deste modo, coloca a subversão e o caos ao serviço do sistema” (op. cit.: 15)28. No texto seguinte, publicado no jornal Süddeutsche Zeitung (Walter Slotsch, SZ, 18/08/1973; apud Link, 1982: 10), mostra-se como o símbolo do carro pode assumir sua função num texto jornalístico: “O freio de um pneu só. O carro apressado da conjuntura econômica alemã, atualmente muito favorável, foi freado apenas em um pneu, nomeadamente, 27 ich lasse den fortschritt sich nach oben bewegen wie eine rakete, auch wohl wie ein auftauchendes u-boot. unterhalb der horizontale befindet sich die finsternis des untergrundes, des urwakldes und dschungels, ggfs. auch des mittelalters und der steinzeit. wie man sieht, ist unser system wirklich am meisten einem u-boot oder einer raumstation ähnlich; deshalb durfte, wie ich meine, der ausfahrbare schnorchel, d. h. die röhre (pipe-line) oben nicht fehlen, die die verbindung zum exponierten glied unseres systems (auch exclave mit korridor genannt) sicherstellt. das umgekehrte pedant des korridors ist der subversive stollen, der von aussen in unser system hineingegraben werden kann (er sieht nicht zufällig wie eine schlange aus). so kann die fl]ut einsickern, der krebs sich mitten in uns hineinfressen. (...) im äussersten fall könnte der innere korridor, der spalt, durch das gesamte system reichen und es spalten (...) in der mitte unseres systems sitzt unser herz (weshalb alle aussen vor befindliuchen per se herzlos sein werden), auch unser motor oder unser energieaggregat. sollen wir nicht in eine schieflage geraten, so ist ausgewogenheit unbedingt geboten – und vor allem müssen die aussenwände des kessels (...) gegen das chãos aus flut, wüste, eiswüste, dschungel, leeren weltraum, gewittern, blitzen, bränden, stürmen, dunkler nacht, ungeheurern und viren absolut wasserdicht halten. in der mitte seine panzers sitzt das subjekt: als ‘ich’ und als ‘wir’ gleichermassen einzig in seinem eigentum – während draussen die finsternis (...) noch dichter wird.” 28 “das u-boot ist vor allem aufgrund seiner ambivalenz das gleichzeitig gefährlichste und faszinierendste symbol ‚unseres‘ militant-geschlossenen industriesystems (...) wenn das boot mit torpedos die tanker jagt, verwndelt es sich selbst in einen hai, stellt noch subversion und chaos in den dienst des systems.“ 54 o monetário. Assim é fácil derrapar. Os outros pneus continuam correr sem entraves: os gastos públicos, as exportações e os salários”. 29 Dependendo do assunto e do contexto, é possível associar os mais diversos símbolos. As catacreses facilitam, deste modo, a ligação dos diferentes conjuntos de símbolos coletivos. O resultado desse processo discursivo é que o sistema dos símbolos coletivos sobre-põe-se ao discurso como uma rede e, deste modo, contribui na sua solidez. Link (1988b) fala de meandros de catacreses que ‘migram’ como um laço enredado pelos ramos discursivos, e ele oferece o seguinte texto como exemplo: “É cada vez maior, a compreensão dos políticos pelo fato de que a maré dos estrangeiros que procuram um asilo político na Alemanha [...] tem que ser retido. [...] Mas aqueles que seguiram o desejo de viver melhor do que em casa, mesmo que seja apenas com o descanso na ‘rede social’, devem ser remetidos. [...] O Partido Social-Democrático [SPD] e o Partido LiberalDemocrático [FDP] criticaram aqueles políticos da União Cristão-Social [CDU] duramente que inventaram a palavra-chave ‘campo de concentração’: todavia, se o processo do asilo deve ser instaurado localmente ao redor dos aeroportos, é impossível [...] fazer da palavra ‘campo’ um tabu. (apud Link, 1988: 49). Observa-se, nesse pequeno fragmento discursivo, que o autor recorre a vários símbolos: a maré, a rede social e o campo de concentração são ligados por catacreses. Conforme Link, o que importa, nessas imagens é que os refugiados são representados como uma maré perigosa contra a qual é preciso construir barragens, ou seja, os assustadores campos de concentração. Tudo isso mostra que é possível, de fato, ler a dispersão dos símbolos como um meandro de catacreses cujas alterações e cujos ciclos de reprodução obedecem a certas regularidades. Nisso, é de se pressupor que o reservatório dos símbolos coletivos (por ex.: balão, trem, navio a vapor, etc.) que aparecem numa dada época histórica ou numa dada área lingüística seja delimitado, mesmo que seja possível, logicamente, de alargar continuamente esse fundo de símbolos. Sendo assim convém elaborar uma grade de analogias que projeta o espaço do discurso contemporâneo. O estudo dos fragmentos discursivos de uma cultura ou época mostra que os símbolos coletivos dispõem de uma capacidade enorme de reprodução cultural. Die Einradbremse. Der dahineilende Wagen der deutschen Hochkonjunktur wurde nur auf einem Rad, nämlich dem monetären gebremst. So kann man leicht ins Schleudern kommen. Die übrigen Räder laufen ungehemmt weiter: die öffentlichen Ausgaben, die Ausfuihren und die Löhne. 29 55 Os membros de uma comunidade gostam de repeti-los e copia-los. Desse modo, o SiSiCol é co-autor em todos os poemas, romances, mitos ou telenovelas; ele se inscreve nas fofocas, nas disputas, na propaganda e nas notícias. Além disso, seus elementos se caracterizam por uma capacidade enorme de formar paráfrases. Tudo isso mostra que é possível resumir num único símbolo uma mensagem inteira; pois um símbolo coletivo harmoniza e une, imaginariamente, os pontos de vista das mais diversas ideologias e as mais diversas áreas da prática. A rede de catacreses produz redes ideológicas e no inconsciente surgem conexões imaginárias, por exemplo, entre esporte e sexualidade, entre cultura e política. Com efeito, os símbolos coletivos conseguem reunir experiências das mais diferentes áreas sociais e certas posições que, em hipótese, são facilmente distinguíveis, de repente podem tornar-se difusas. Todo acontecimento “real” é percebido inconscientemente pelo filtro do SiSiCol e as possibilidades combinatórias entre os diferentes símbolos facilitam a concatenação de diferentes ramos discursivos e fortalece os diferentes pontos de vista ideológicos. Pois o uso de símbolos implica nas avaliações: “Nós somos saudáveis, os outros doentes – nem pergunte o que é melhor” (Link, 1982: 12). O fundamento dessas avaliações ideológicas encontra-se sempre na oposição “sistema próprio vs. sistema alheio (ou caos)” (id. ibid.). É claro que o sistema próprio sempre representa o lado positivo desta oposição simbólica. Conforme Van Dijk (1987), a solidez dos discursos, seu embasamento social e sua ampla distribuição devem-se, antes de tudo, aos esquemas adquiridos de pensamento e ao fato de que a produção e consolidação do discurso ocorrem no ambiente de um simbolismo estabelecido firmemente pelos discursos dominantes. Nenhum acontecimento, nenhuma notícia é codificada apropriadamente se ele não recorre a esse simbolismo coletivo. O sistema de símbolos coletivos (SiSiCol), deste modo, representa “a cola dos discursos” (Link, 1982:11ou, melhor ainda: “O SiSiCol é [...] a cola da sociedade, ele sugere, à fantasia, uma totalidade imaginária da sociedade e dos indivíduos. Enquanto nossa compreensão da sociedade real e do nosso sujeito real é bastante limitada, em nossa cultura, devido à grade de significados simbólicos, sentimos-nos sempre em casa. Sabemos nada sobre câncer, mas entendemos imediatamente porque o terrorismo é o câncer da sociedade. Sabemos nada sobre as verdadeiras causas das crises econômicas, mas compreendemos imediatamente que o governo tem que fazer uma aterragem forçada30” (id. ibid,). das sysykoll ist ... der kitt der gesellschaft, es suggeriert eine imaginäre gesellschaftliche und subjektive totalität für die phantasie. während wir in der realen gesellschaft und bei unserem realen subjekt nur sehr beschränkten 30 56 Assim sendo, o SiSiCol e a cultura são intimamente ligados: “O SiSiCol é uma viga da sociedade à medida que ele é um elemento fundamental do interdiscurso” (id.ibid.). A presença dos símbolos coletivos nos enunciados dos sujeitos falantes comprova freqüentemente como o indivíduo é envolvido no interdiscurso social. O emprego dos símbolos, visto como “ideologemas”, remete o analista à origem do interdiscurso, ou seja, aos discursos especiais (discursos político, acadêmico, pedagógico, midiático, etc.) que fornecem as palavras-chave para incrementar o interdiscurso e incluir toda a população nele. As posições discursivas fortalecem-se ainda mais quando cadeias inteiras de símbolos estão em oposição. Num exemplo ilustrativo, Link (1982: 12) cita um conjunto de símbolos do movimento ecológico que se opõe à ideologia do eterno progresso industrial: “vegetação, arvore, verde, planta, pedra vs. maquina, concreto, fábrica, usina nuclear, foguete, etc.” Em seguida, o autor afirma que cada indivíduo “nada no SiSiCol da sua cultura” (op. cit.: 13) e é interpelado (Althusser) permanentemente por seus discursos elementares (por ex.: piadas, esporte, carnaval) e institucionais (escola, igreja, mídias). O SiSiCol forma os sujeitos ao fornecer-lhe fragmentos discursivos socialmente pré-selecionados e ao impor-lhes as escolhas imaginárias entre os símbolos do bloco hegemônico (cf. Gramsci apud Portelli, 1977): “Os indivíduos são obrigados a identificar-se [...] com símbolos positivos ou negativos do SiSiCol. O sujeito formado assim, inicialmente, é um ‘nós’ [...] antes de tornar-se ‘eu’” (id. ibid.). Link acrescenta ainda alguns exemplos para essas avaliações ideológicas e mostra como uma cultura cria seus limites através de estereótipos dominantes e da ocupação de posições discursivas: “Nós [os alemães] não somos ratos, nem parasitas, não vivemos no submundo, não somos câncer ou veneno, nem estamos no off side [impedido], nós não inundamos barragens, nem acendemos casas; aliás, antes de tudo, nós não somos o caos. Em vez disso, nós todos formamos um corpo saudável, uma fortaleza firme, uma barragem forte, um carro limpo, etc. (id. ibid.)” Os discursos, de maneira algum, representam processos inofensivos e sem conseqüências, pois eles aumentam a disposição de realizar certas ações (por ex.: ataques contra muçulmanos, judeus, índios, mendigos, pretos, durchblick haben, fühlen wir uns dank der symbolischen sinnbildungsgitter in unserer kultur zuhause. wir wissen nichts über krebs, aber wir verstehen sofort, inwiefern der terror krebs der gesellschaft ist . wir wissen nichts über die wahren ursachen von wirtschaftskrisen, begreifen aber sofort, dass di eregierung notbremsen musste.... 57 homossexuais ou membros de outras etnias, religiões ou minorias). O discurso, portanto, deve ser vista como “uma maneira de falar estabelecida institucionalmente que exerce o poder à medida que determina e apóia certas ações31” (Link, 1983: 60). As estratégias e táticas na convivência com o SiSiCol, os tipos de sua aplicação pragmática e sua força de coesa diante dos sujeitos de uma cultura, portanto, devem representar um objeto principal da análise do discurso. É lamentável que Foucault, na sua aversão justa contra a “alquimia da semântica” delimitou suas considerações lingüísticas à análise dos atos de fala (Foucault, 2002b). Desse modo, ele desprezou sempre as ferramentas da arte da significação e mostrou sua antipatia à análise de símbolos; mesmo assim, não há de negar que a ligação de dois ou mais discursos através de símbolos coletivos e a totalização dos conteúdos ideológicos denotados neles representam um enorme efeito de poder, cuja materialidade merece uma análise crítica: “[Foucault] não levou em conta os efeitos de poder que derivam da integração e totalização imaginárias, simbólicas e discursivas meramente dos discursos especiais e ele subestimou seus efeito sobre a constituição dos sujeitos” (Link, 1984: 111). O poder do SiSiCol é tão forte que até os sujeitos que querem ocupar uma posição alternativa têm que recorrer ao seu reservatório de símbolos coletivos. Não há um poema, um conto ou um drama que não fosse ancorado, mais ou menos, no simbolismo coletivo. De fato, é possível imaginar tudo isso como um ciclo de reprodução que não volta apenas a seu ponto de partida, mas que modifica e alarga continuamente o inventário de símbolos coletivos. Os símbolos coletivos, desse modo, formam a matéria prima para produzir mitos cotidianos. Quando as pessoas percebem acontecimentos reais, eles os percebem pela grade do sistema dos símbolos coletivos. Assim sendo, pode-se concluir, enquanto as outras variações da análise do discurso focalizam o contexto imediato de certas palavras para analisar as modificações ou transposições do significado, a abordagem de Link é adequada especialmente para objetivar o campo difuso das visões de mundo cotidianas. 31 [Diskurs ist] eine institutionell verfestigte Redeweise, insofern eine solche Redeweise schon Handeln bestimmt und verfestigt und also auch schon Macht ausübt. 58 A dispersão discursiva torna-se compreensível nos diferentes ramos discursivos que se compõem de fragmentos discursivos do mesmo sujeito em diferentes níveis discursivos (ciência, política, mídia). Cada discurso é encaixado historicamente e tem seu impacto em discursos contemporâneos e futuros. Também surge, assim, a diferença principal entre a análise do discurso e a análise do texto: a lingüística textual se delimita mais ou menos ao texto como tal e a suas regularidades internas; em conexão com a análise do discurso, no entanto, afirma-se que a análise da linguagem e a análise da sociedade (e das condições sociais) devem ser coligadas. Para Foucault, o sujeito falante é submetido às regras da prática discursiva cujo funcionamento não depende da consciência dele. As regras da formação discursiva determinam quando e em qual posição lhe for possível e permitido enunciar alguma coisa. Esse aprisionamento discursivo dos enunciadores leva a pergunta se o sujeito dispusesse de certas opções expressivas que envolvem decisões conscientes e individuais ou se cada escolha surgisse na verdade de uma liberdade imaginária que reflete apenas um aspecto da apelação ideológica e da dispersão do sujeito. sugere um alargamento do conceito “do discurso asujeitado” de Foucault e, desate modo, a busca de vestígios autoriais no sistema dos significados sociais. Nessa abordagem, é de se pressupor que o sujeito enunciador adquire experiências sociais através de enunciados. Isso significa que ele se comunica com os outros ao usar expressões lingüísticas diante o horizonte das experiências compartilhadas. Nisso, ele não emprega o material lingüístico como meros instrumentos de um caixa de ferramentas, mas de uma maneira que produz novos significados adequados à situação atual. Em outras palavras, experiências anteriores são generalizadas através de experiências atuais e recebem através do sujeito enunciador um significado que recorre ao presente social Os enunciados, como expressões com significados próprios, são relacionados ao sujeito 59 Retomando certas idéias de Gramsci (cf. Portelli, 1977), Luhmann distingue entre o bloco formativo-histôrico e o bloco sócio-histórico. A saber, o primeiro termo diz respeito à união das classes sociais sob o reinado da hegemonia; o segundo refere-se à união entre as diversas áreas da prática e do conhecimento de uma cultura. Uma outra variante da AD encontra-se na abordagem semiótica de Jürgen Link que analisa como “o sistema dos símbolos coletivos” (chamado “Syssykoll”) funciona tanto em textos cotidianos (que Link chama de “literatura elementar”) quanto nas obras literárias (que Link chama de “literatura alta”). O ponto crucial desta abordagem encontra-se no termo “interdiscurso” que especifica, conforme Link, o maior divisor comum entre os “discursos especiais” (por ex.: discurso jurídico, médico, econômico, religioso etc.): O produto da enunciação é um enunciado ou um texto, entendido por Maingueneau (2000: 140) como “uma seqüência lingüística autônoma, oral ou escrita, produzido por um ou vários enunciadores numa situação de comunicação determinada”. A produção desse texto é limitada pelas múltiplas restrições impostas pelos gêneros textuais disponíveis numa comunidade de fala. A função social desse texto é, antes de tudo, exprimir lingüisticamente um pensamento a fim de torna-lo receptível para outros. Uma condição prévia da produção de textos é o conhecimento adquirido durante a socialização, um processo de aprendizagem que envolve o indivíduo nos discursos sociais existentes no seu ambiente. A saber, o autor de um enunciado segue, em cada situação, uma necessidade concreta e dispõe de um motivo determinado. Para alcançar seus objetivos, ele usa seu conhecimento com uma certa intenção. Nisso, ele considera às condições de recepção e recorre às convenções lingüísticas e às operações mentais traduzidas. As palavras não tem significado em si: “É o texto que significa. Quando uma palavra significa é porque ela tem textualidade, ou seja, porque a sua interpretação deriva de um discurso que a sustenta, que a provê de realidade significativa.” (Orlandi, 2002: 52). 60 Os textos nunca representam apenas manifestações individuais, mas são também sempre sociais. Eles contêm fragmentos de discursos sócio-históricos e supraindividuais Os textos podem ser associados a determinados ramais discursivos cujos meandros percorrem os diferentes níveis e redes discursivos e que, na sua totalidade, constituem o discurso de uma sociedade. A originalidade do texto, então, é uma ficção. O texto sempre provém de outros e mira para outros. Sendo exemplar de discurso, ele não tem uma superfície plana, mas múltiplos planos significantes. Essa condição pluridimensional explica por que qualquer texto é aberto a diferentes interpretações, dependendo das diferentes posições de sujeito e das diferentes formações discursivas. Orlandi (1996:20) nos remete para esse conceito quando constata que os elementos significantes não são pré-determinados por propriedades intrínsecas: “A linguagem é necessariamente opaca e incompleta, porque não há sentido em si. A linguagem é um sistema de relações de sentidos onde, a principio, todos os sentidos são possíveis, ao mesmo tempo em que sua materialidade impede que o sentido seja qualquer um”. 2.2. A análise de discurso anglo-americana Outra abordagem do discurso entende como análise do discurso a análise da conversação. Nisso, é importante analisar sistematicamente as estruturas de conversações reais e situações reais de comunicação. O objetivo, então, é, por assim dizer, produzir uma gramática textual, i.e., revelar as regras que determinam a produção de conversas. Essa versão da análise de discurso vale-se, muito, dos conceitos e métodos da pragmática lingüística e de abordagens analíticos que foram desenvolvidas pelos sociólogos que estudam o interacionismo simbólico. A palavra “discurso”, nesse modelo, descreve uma unidade analítica abrangente que inclui toda a situação complexa de uma comunicação concreta e que pode ser subdividida em diferentes seqüências de atos de fala. Cada seqüência (por exemplo, uma seqüência de saudação) constitui-se de formas lingüísticas ainda menores que, por sua vez, mostram também certas regularidades. Um discurso, então, se caracteriza pelo fato de constituir-se tipicamente de uma ordem determinada na sucessão dos atos de fala, enquanto exclui a possibilidade de produzir outras ordens. Ele se realiza, então, regularmente, mas, apesar da rigidez na estrutura dos elementos 61 essenciais, é possível que ele permita certa variabilidade na ordem de seqüências secundárias ou facultativas. As regras se determinam, principalmente, pelo setting, i.e., pelo contexto do discurso, por exemplo, no discurso pedagógico ou no discurso judiciário. Deste modo, na sala de aula, geralmente não há lugar para discussões espontâneas. Os professores distribuem o tempo de fala e a interação se constitui tipicamente de um jogo de perguntas e respostas entre os professores e os alunos. Um terceiro tipo de análise de discurso se encontra na chamada “análise crítica de discurso” que, como o nome já sugere, se baseia numa visão crítica da sociedade. Portanto, ela se importa com a questão de como certos conteúdos são realizados lingüisticamente. Além disso, quais mecanismos são usados nisso? Será que os conteúdos são expressos implícita ou explicitamente? Será que as formas textuais predeterminam os textos futuros e, caso afirmativo, de que modo essa influência ocorre? Um discurso concreto, nessa abordagem representa a soma dos textos e conversas institucionalizados que são interpretados como ações significativas, casos individuais de uma prática sócio-cultural, política e ideológica que determina os sistemas e as estruturas de uma sociedade. O objeto de pesquisa, portanto é a soma dos textos e conversas relevantes, num dado momento histórico, para uma área social (por ex.: o discurso das mídias). O modelo pressupõe que os textos sempre se referem também a diferentes períodos e espaços num passado próximo ou mais remoto e a outros textos (intertextualidade). Em outras palavras: os textos mantêm relações discursivas entre si que podem ser comprovadas lingüisticamente. Conforme o analista de discurso Norman Fairclough (1995, Critical Discourse Analysis: The Critical Study of Language. London, New York: Longman. Pág.1), a análise de discurso inclui simultaneamente uma análise das relações de poder: “Power is conceptualized both in terms of asymmetries between participants in discourse events, and in terms of unequal capacity to control how texts are produced, distributed and consumed (and hence the shapes of texts) in particular sociocultural contexts.” “Assim, o que diferencia a Análise do Discurso de origem francesa da Análise do Discurso anglo-saxã, ou comumente chamada de Americana, é que está última considera a intenção dos sujeitos numa interação verbal como um dos pilares que a sustenta, enquanto a Análise do Discurso francesa não considera como determinante essa intenção do sujeito; considera que esses sujeitos são condicionados por uma determinada 62 ideologia que predetermina o que poderão ou não dizer em determinadas conjunturas histórico-sociais” (Mussalim, 2000: 113) Percebe-se facilmente que a abordagem se aproxima dos estudos culturais britânicos e pode ser vista como uma corrente programática da crítica da ideologia orientada na vida cotidiana. Evidentemente, falta ainda analisar e integrar as categorias centrais que organizam o discurso, a saber, a geração dos objetos. A conjuntura da palavra “discurso” torna essa localização necessária Já que Foucault quer compreender o momento da dispersão com adequadas regras de formação, ele deveria indicar quem são os atores desse “jogo de regras”; mas esses são excluídos completamente, na aspiração de conceituar regras discursivas anônimas que não dependem da consciência do falante.